quarta-feira, dezembro 20, 2006

Parabola

E porque o Natal está cada vez mais próximo deixo-vos no sapatinho esta obra-prima do génio de Adam Jones guitarrista da banda Tool. Deixem-se levar por esta Parabola.
All this pain is an illusion.

Feliz Natal para todos os que me visitam.
E porque não vou regressar mais este ano, desejo-vos um ano de 2007 ainda melhor.



So familiar and overwhelmingly warm
This one, this form I hold now.
Embracing you, this reality here,
This one, this form I hold now, so
Wide eyed and hopeful.
Wide eyed and hopefully wild.

We barely remember what came before this precious moment,
Choosing to be here right now. Hold on, stay inside...
This body holding me, reminding me that I am not alone in
This body makes me feel eternal. All this pain is an illusion.

We barely remember who or what came before this precious moment,
We are choosing to be here right now. Hold on, stay inside
This holy reality, this holy experience.
Choosing to be here in

This body. This body holding me. Be my reminder here that I am not alone in
This body, this body holding me, feeling eternal
All this pain is an illusion.

Alive!

In this holy reality, in this holy experience. Choosing to be here in

This body. This body holding me. Be my reminder here that I am not alone in
This body, this body holding me, feeling eternal
All this pain is an illusion.

Twirling round with this familiar parable.
Spinning, weaving round each new experience.
Recognize this as a holy gift and celebrate this chance to be alive and breathing.

This body holding me reminds me of my own mortality.
Embrace this moment. Remember. We are eternal.
All this pain is an illusion.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

As Raízes da Promessa (parte 1)

O Cisne Negro estava sentada num banco de madeira no jardim que embelezava a Praça da Deusa Anfitrite. Àquela altura já não se deixava deslumbrar tanto pela paisagem bucólica existente ao redor daquela estância.
Aos cinco anos era uma menina que se refugiava em pensamentos demorados junto da mais importante divindade feminina de Atlântida. Sentia-se impelida a fazê-lo embora não tivesse sido enfeitiçada pela religião. Era como se Anfitrite a chamasse e a obrigasse a falar tudo o que lhe ia na alma sem preconceitos.
Os últimos três anos tinham sido demasiado pacatos. Sentira-se como um peixe fora de água. Não se enquadrava de todo naquele meio eclesiástico. Não conseguia relacionar-se com ninguém. Foi o que dissera à Deusa assumindo que estava a desrespeitá-la dalguma forma.
Logo no dia seguinte, por mera causalidade, tinha lhe sido concedida alguma liberdade para que não se sentisse tão deslocada. Poderia passear livremente por toda aquela área. Tinha o aval de Mar-Hir. Desconhecia porque motivo teria permitido tal revelia. Teria sido uma intervenção divina? Teria sido Anfitrite?
A criança viu serem alargadas as suas fronteiras, ainda que houvesse alguns locais intransitáveis. Mas tudo aquilo não lhe chegava. Não era somente o local que a restringia, era principalmente o secretismo daquele povo, eram todos muito fechados, demasiado introspectivos. Não deixava de ter a sua ironia, era cada um por si e no entanto eram unidos.
A Rinkinen recordava-se da conversa que tivera com o seu avô:
- Há pessoas que me olham demoradamente mas não me falam. Por que motivo olham tanto para mim, terei alguma coisa de errado? – questionou com aqueles olhos estonteantes, qual mar bravio que se revoltava à procura de tranquilidade.
- Olham-vos num misto de admiração e condenação. Lembrai-vos, fostes a primeira bebé a nascer durante a Luz Frouxa. – recordou numa clara espontaneidade.
Jamais o Pontífice lhe omitiria a condição especial que a distinguia de qualquer outro atlante. Iria informá-la, sempre que necessário, do plano que tinha reservado para si. Não era de se silenciar como muitos do Povo que tutelava.
- Não faças essa cara. Não tem que ser necessariamente ruim nascer durante a fase menos luminosa do dia. Não te deixes condicionar pelo que as pessoas te dizem ou simplesmente pelo modo severo como te olham. Não lhes cabe julgar os mistérios da vida. – serenou-a colocando a mão por cima do ombro da sua neta para lhe livrar do ambiente intimidante em que se encontrara. - Daqui a uns dias levar-te-ei até Cabassus, visitarás os teus pais. – anunciou com alguma reserva.
Nem Mar-Hir, que contava com uma idade avançada e uma inestimável experiência acumulada, sabia muito bem como a tratar. Ora como uma simples menina que protegia carinhosamente, ora como uma reverência atribuída a uma pessoa de um grau de importância elevado, uma pequena senhora. A forma indefinível como se dirigia à Rinkinen explicava-se pelo facto de estar a lutar contra o futuro. Sabia o que lhe estava destinado pois assim o tinha previsto. Apenas não sabia qual o momento em que a balança iria pender mais para o lado de Instrutor da Luz rígido e implacável do que propriamente para seu avô carinhoso, que a enchia de mimos.
Regressada dos seus pensamentos viscerais, a filha de Cabassus afagou um dos seus inseparáveis cisnes. A família tinha aumentado entretanto. Eram agora dezasseis, onze negros, cinco brancos. Tinham acabado de debicar sementes das suas mãos. Um hábito que a sua querida mãe lhe tinha ensinado.
O bando dirigiu-se até ao pequeno lago Inélun, para junto dos seus ninhos. Alguns ainda mergulharam o seu longo pescoço para mordiscar as plantas subaquáticas ficando apenas com a cauda à superfície. Ao menos desfrutavam daquele habitat natural ao ponto de rejubilarem à sua frente. Nem sempre se compadeciam com o estado de espírito da sua tratadora.
Distraiu-se com o movimento colectivo de Iniciados e uma Sacerdotisa a comandá-los ordeiramente. Era Asrae. Distinguia-a ao longe pelos seus cabelos loiros claros que contrastava com a sua indumentária cinzenta. Àquela idade dispensava a atenção permanente da sua Ama. Contudo seguiu no seu encalço apenas para perguntar pelo paradeiro do seu avô.
- Não está, foi meditar junto de Galieas Sirthion.
- E quem é? É a sua mulher?
- Não sua tonta, Galieas Sirthion é a Grande Árvore da Vida.
A Sacerdotisa sorriu abusivamente antes de lhe explicar perante aquelas seis crianças já suficientemente crescidas para saberem que Galieas Sirthion não era uma pessoa mas sim o ex-libris da natureza atlante.
- É a Mãe de toda a Natureza que nos rodeia. Pensei que o Pontífice te tivesse levado lá, ao Monte Atlas. Bem, sempre podes olhar a nordeste e contemplar a nossa Mãe no horizonte.
O seu olhar virou-se para a direcção indicada pela Sacerdotisa. Avistou a Magna Árvore com amuo pois o seu avô não lhe tinha feito tal convite. Desejaria muito conhecê-la. Deveria ser gigantesca para ser vislumbrada dali.
Apesar de ainda ser muito nova para seguir o Princípio Templário, a sua ama convidou-a a juntar-se àquele de grupo de iniciados até à Grande Biblioteca.
Mais uma vez a Rinkinen recusou o convite. Era uma criança bastante contraditória. Não desejava ser preterida e no entanto desperdiçava todas as oportunidades para deixar de o ser. Tal atitude já vinha de trás, desde que tomara conhecimento dos comportamentos distanciados do Povo do Cristal. E tal distância nunca fora suprimida. E pelos vistos não seria ela a dar o braço a torcer.
- Então se entretanto encontrares Adelius diz-lhe onde estamos. – requereu a Sacerdotisa antes de se encaminhar para o Templo, juntamente com os seus discípulos.

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Desafio

Voltei do mundo das sombras, temporariamente. Irei visitar todos os vossos blogues. Agradeço a compreensão.
Fui desafiado pela Isabel, espero que ela não me leve a mal se lhe apelidar de “a escritora supersónica”.
O jogo consiste em falar de 6 manias e seguir as regras desafiando 5 pessoas. Desafio desde já a Angel, Broken, Pierrot, O Alquimista, Vero, White Roses Princess, Devaneios e mais duas pessoas que não tem blog mas pode comentar aqui, sim tu mesma, my Black Swan, e tu Mónica. Não são cinco pessoas, também não sou o único a quebrar as regras :P

Então cá vão as minhas manias. Não quero alongar-me muito, estou a pensar na vossa saúde mental. Mas veremos até onde irão as minhas descrições.

1. Tenho a mania de pensar muito, tanto que me distraio. Tanto posso ser um bom observador como um distraído de primeira. Não é por acaso que ia sendo atropelado há dias.

2. Tenho a mania de ouvir música sempre que escrevo. Tenho a mania de ouvir música quando estou na rua, ao ponto de abanar a cabeça, e fazer os gestos com as mãos como se estivesse a encarnar um dos meus ídolos, Danny Carey, baterista dos Tool. Eu sei que há quem pense “olha aquele é maluco”. Melhor comprar uma bateria e fazer isso em casa para não dar nas vistas.

3. Tenho uma mania recente, ir aos grandes festivais de música e trazer muitas peripécias para contar. É sempre uma aventura. Alguém quer vir?

4. Tenho a mania das promessas a mim mesmo, como ir correr para um circuito de manutenção situado nos Pinheiros de Marim e tentar correr 6 kms em menos de meia hora. Será antes mania da perseguição?

5. Tenho a mania da desorganização para depois ter prazer em arrumar tudo.

6. Tenho a mania de ser um pouco masoquista. Mas escuso-me de me explicar. Não quero influenciar ninguém aqui.

7. Tenho a mania de andar descalço em casa, mesmo em pleno Inverno, sempre descalço e pés congelados, mesmo doente e tal.

8. Tenho uma mania estranha de registar notas através do site do Eurobilltracker (www.eurobilltracker.com). Mas há muitos malucos como eu a fazer o mesmo.

9. Tenho a mania de nunca tirar uma cruz que uso da banda Nightwish.

10. Tenho a mania de ser um tio babado. Esta é a minha mania preferida.

11. Tenho a mania de dar tudo pelos meus amigos.

12. Tenho a mania dos amores não correspondidos. Será uma mania?

E ficamos por aqui. Sim tenho consciência de que enumerei mais do que as seis manias estipuladas. Não sou assim tão maluco como podem pensar.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Wings for Marie/ 10 000 Days



Sei que tenho estado ausente dos vossos blogs mas queria partilhar-vos esta obra-prima da banda Tool. Uma música de 17 minutos e 25 segundos dividida em duas partes Wings for Marie e 10000 Days. Jamais os meus ouvidos irão escutar uma música tão linda como esta... e tão trágica...
Podia falar muito sobre esta melodia fúnebre mas não vou alongar-me muito mais, apreciem a letra, é de uma profundidade emocional indescritivel, sobre Judith Marie, mãe do vocalista que ficou paralisada numa cadeira de rodas cerca de 10 000 dias (27 anos e 4 meses).
Se quiserem procurá-la experimentem ouvi-la no escuro, com auscultadores, ou à janela vendo a chuva cair. Irão perceber a diferença. Estou a postá-la porque confesso que não páro de chorar não só pela música em si mas por outros motivos pessoais.

Wings for Marie (part 1)

You...
You believed...
You believed in moments none could see
You believed in me

A passionate spirit
Uncompromised
Boundless and open
A light in your eyes that
Could end all lies

Broken, broken
Fell at the hands of this moment so that I wouldn't see
It was you who prayed for me so
What have I done
To be a son to an angel?
What have I done
To be worthy?

Daylight dims leaving cold fluorescence
Difficult to see you in this light
Please forgive this selfish question, but
What am I to say to all these ghouls tonight?
She never told a lie,
... well might have told a lie,
But never lived one.

Didn't have a life
Didn't have a life
But surely saved one
So I'm alright
Now it's time for us to let you go.

10 000 days (wings pt. 2)

Listen to the tales and romanticize,
How we follow the path of the hero.
Boast about the day when the rivers overrun.
How we rise to the height of our halo.

Listen to the tales as we all rationalize
Our way into the arms of the saviour,
Fading all the trials and the tribulations,
None of us have actually been there,
Not like you.

Ignorant fibbers in the congregation,
Gather around spewing sympathy,
Spare me.
None of them can even hold a candle up to you.
Blinded by choices, hypocrites won't see

But, enough about the collective Judas.
Who could deny you were the one who
Illuminated
Your little piece of the divine?

This little light of mine, the gift you passed on to me;
I'll let it shine, to guide you safely on your way,
Your way home...

Oh, what are they going to do when the lights go down
Without you to guide them all to Zion?
What are they going to do when the rivers overrun
Other than tremble incessantly?

High is the way, but our eyes are upon the ground.
You are the light and the way, they'll only read about.
I only pray, Heaven knows when to lift you out.
Ten thousand days in the fire is long enough, you're going home.

You're the only one who can hold your head up high,
Shake your fists at the gates saying:
"I have come home now!
Fetch me the spirit, the son, and the father
Tell them their pillar of faith has ascended.
It's time now!
My time now!
Give me my, give me my wings!”

Give me my wings!

You are the light and way that they will only read about.

Set as I am in my ways and my arrogance,
Burden of proof tossed upon the believers.

You were my witness, my eyes, my evidence,
Judith Marie, unconditional one.

Daylight dims leaving cold fluorescence.
Difficult to see you in this light.
Please forgive this bold suggestion:
Should you see your Maker's face tonight,
Look Him in the eye, look Him in the eye, and tell Him:
I never lived a lie, never took a life, but surely saved one.
Hallelujah, it's time for you to bring me home.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Delirium (parte 3)


Asrae ficou arredada das descobertas de Mar-Hir pois este focou-se exclusivamente na sua capacidade de reaver as memórias do Cisne Negro, que já de si eram dissipantes. Certificou-se que a Rinkinen andou às voltas pelo Templo isto porque assimilou muitos pormenores que a rodeavam, tendo passado por vários corredores, salões e torreões. Quanto aos sentimentos, o seu ambiente interno era sepulcral. Não houve muita tranquilidade por onde passou. Sentiu-se completamente perdida. Ainda que, a certa altura, se tivesse deparado com a presença de um colectivo de pessoas que não conseguia distinguir, provavelmente porque não existiam, não estavam verdadeiramente ali.
Ao desvendar o plano esotérico do seu devaneio avistou a aproximação de uma mulher bastante atraente. O juízo pronto e concreto identificou ser o corpo e um rosto de uma ninfa. Tal figura divinal debilitava-lhe o carácter pois a pequena desejava ser tão esbelta quanto ela.
A luz negra que se espalhava num dormitório fumarento foi a última visão que obtivera. A falta de fluidez daquela digressão não lhe permitira ver mais além nem através da força da energia cristalina que se manifestava mediante parábolas.
- Ela está mais vulnerável de cabelo curto. - concluiu depois de ter rompido aquela projecção mental - De cabelos encaracolados é influenciada pela distracção, de cabelos curtos é influenciada pela ansiedade. – meditou numa interpretação genérica.
- As crianças são tão sensíveis… - analisou a Sacerdotisa.
- Se é uma questão de estabilidade então…
Usando a sua natural aptidão para realizar magias, o Ancião fez crescer os cabelos do Cisne Negro com um simples gesto da sua mão direita.
- É muito nova para sofrer tais delírios.
Era fundamental erradicar esse temor indesejável, essa insegurança perigosa mostrada pelo seu delírio transcendental que se reproduzira na realidade, na sua queda de vinte e três degraus. Fez reaparecer os seus fios de cabelo encaracolados para que não se tornasse obnóxia do sonambulismo.
- E quanto ao seu dente partido? – Asrae lançava uma questão pertinente.
- Vamos deixar essa porta semi-aberta. Ela precisará de compreender a natureza das suas influências. Pode ser uma semente que mais tarde dará frutos, doces ou amargos, veremos.
Seguidamente, o Ancião abanou levemente a criança para que acordasse. Não tardou muito até abrir completamente os olhos e tomar consciência do local onde se encontrava e quem estava ali consigo.
- Que faço aqui? – interrogou num tiritar de frio.
- Tiveste uma ligeira indisposição. Mas já estás bem. - retribuía o Pontífice num largo sorriso.
Não se sentira intimidada, tampouco reparara que os seus cabelos haviam crescido num fechar e abrir de olhos. Estava apenas ensonada e um pouco confusa dos seus sentidos. O motivo porque estava ali deitada? Nem se lembrava. Tal motivo era tão negro como o seu nome, como o esquecimento. No entanto estava serena, não se sentia intimidada.
- Dói-me as costas…- queixou-se.
- Anda levar-te-ei para a tua cama. – prontificou-se Asrae em acolhe-la nos seus braços e levá-la para o seu quarto.
Sentiu-se transportada por uma luz negra mas não se importou. Exibiu um sorriso desdentado sem se dar conta que lhe faltava um pedacinho de um dente. Apenas murmurou baixinho, não se percebendo o que dissera ao certo.
- Yamsh bei…

O Cisne Negro despertara com o raiar cristalino sem se lembrar da maioria das ocorrências do dia anterior. Quando encarou o seu reflexo no espelho perguntou-se porque lhe faltava um pedacinho de um dente. Deve ter caído da cama e não se recordava, pensou.
Continuou a pentear os seus cabelos encaracolados ignorando que Asrae os tinha cortado e que Mar-Hir os tinha feito crescer novamente depois daquela aventura durante a Luz Frouxa.
O Pontífice já tinha chamado uma gaea para entregar a carta que a criança escrevera para os seus pais. O seu conteúdo poderia comprometer a falha da memória da Rinkinen.
Precisava poupá-la por enquanto das energias ocultas que conspiravam contra si desde o dia em que nascera.
(Próximo Capítulo: As Raízes da Promessa - Cisne Negro aos 5 anos)

sexta-feira, novembro 10, 2006

Delirium (parte 2)

(A continuação de Delirium tardava a ser postada. Aqui está. Lembro que o livro "Asas Rubras" poderá, brevemente, ser encontrado no Porto, na livraria Unicep e na livraria Poetria, que ficam na baixa do Porto. Podem também encomendá-lo a partir do meu e-mail.)

Passos afligidos seguiram o fragor escutado, sinal que nem todos do Povo de Cristal dormiam nas profundezas do sossego que a Luz Frouxa lhes facultava.
Asrae fora a primeira a afluir ao local do incidente. A Sacerdotisa de claros cabelos loiros despenteados escandalizou-se ao encontrar o Cisne Negro desmaiada. O seu pequeno e frágil corpo estava deitado de barriga para baixo com a cabeça de lado sobre um dos mosaicos de tesselas pretas e brancas que constituíam o chão daquele salão. Afinal não era feito de cristal como se supunha. Essa era apenas uma das ilusões de óptica criadas pelo Grande Cristal, tal como o tecto oitavado que reflectia a tepidez da sua luz.
- Pobre criança… o que lhe aconteceu…?
Observou instantaneamente desde o cimo da escadaria Viginti Tres e imaginou como violenta terá sido a queda. Não se pense que o pânico tivesse tomado conta de si ou que tivesse perdido momentaneamente a lucidez. Como discípula do Cristal, a sua calma era abismal. Foi peremptória em prestar-lhe os primeiros socorros tomando-lhe o pulso. Como o achou regular, procurou, cuidadosamente, saber se teria alguma contusão ou alguma fractura exposta. Após uma minuciosa busca não lhe encontrou qualquer mazela exceptuando o sangue junto à sua boca. Constatou que tinha partido um pedaço de um dente, um dos incisivos.
Levantou-se envolvendo-a nos seus braços quando nesse preciso momento alguém vindo do exterior do Templo surgia sobre a sua silhueta.
- Venerado Pontífice…- Asrae virou-se repentinamente num susto do coração. – O Cisne caiu, está desmaiada é preciso que…
- Não. Está simplesmente a dormir. – esclareceu de imediato. - Saiu ilesa. Terá sido este, um acontecimento milagroso? - questionou-se num trejeito vulgarmente irónico.
Asrae juntou-se àquela deferência ortodoxa, segurando a criança no seu colo com toda a sua admiração enquanto que Mar-Hir examinava a sua condição física antes de averiguar a psicológica.
- Tantas e tantas vezes que descia a correr estas escadas que algum dia…
A ama calou-se apercebendo-se que o Ancião lhe sugeria um domínio silencioso. Num temperamento clemente, Mar-Hir colocou a mão sobre os lábios cortados da Rinkinen curando-os. Notou no pedaço de dente que lhe faltava. Proferiu no seu jeito bastante sereno e simultaneamente esfíngico as mesmas palavras proféticas que lhe costumava dizer:
- Mostrar-te-ei o teu caminho, a tua rota. Sofrer não significará a tua derrota… Descansa por agora meu pequeno cisne… descobrirei o que te perturbou…
O Pontífice ordenou à Sacerdotisa que a colocasse de novo no exacto local onde a tinha encontrado e na mesma posição. Precisava de captar o que realmente a precipitara naquela queda. Para isso iria basear-se na teoria da reminiscência, activando uma projecção hipnótica para recuperar as suas visões.
Com a sua mão larga colocada sobre a cabeça do Cisne, o Ancião apercebera-se que aquele bebé tinha entrado num transe profundo tinha entrado num transe profundo. Tentava entender a linguagem daquele delírio que havia sofrido. Por mais absurdo que fosse teria algum significado. Estava a visionar uma breve gravação dos seus pensamentos, ideias, acções, desejos e temores quando fora interrompido.
- O que foi que ela sonhou? – interpelou Asrae na sua inquietude, agachada tal e qual o Pontífice.
- Não foi um sonho. Não vos induzis em erro. Ela esteve sempre acordada. – assegurou sem perder a concentração.
- Foi um delírio. Perscruto visões que lhe bloquearam a mente e dominaram o seu corpo.
- Um acto de sonambulismo…- comentou num semblante cismático. - E que visões perscrutais?

sexta-feira, novembro 03, 2006

Asas Rubras (novidades)

Prometi esclarecê-los quanto ao meu primeiro livro “Asas Rubras”. Pois bem, trata-se um livro de poesia que dedico exclusivamente a uma pessoa. Quem o ler descobrirá o seu nome. Não fiques corada! Sim tu! :P

Só poderá ser encontrado no Porto. Quem estiver interessado e não pode deslocar-se à maravilhosa Invicta, poderá encomendá-lo via correio, pois na próxima semana terei alguns livros para vender. Escrevam-me um e-mail (luigi_delvecchio@hotmail.com) com o vosso contacto que enviarei o livro autografado.
Poderão também contactar a editora:
Para já fiquem com um dos poemas de “Asas Rubras” escolhido pela rapariga a quem chamo Cisne Negro.
A Pirâmide estava a ruir!
A pirâmide estava a ruir… Encontrávamo-nos no seu interior. Não havia nenhuma saída
Tambores… dezenas deles. Os seus sons eram graves e sincronizados. Não havia saída
Celebravam uma espécie de ritual fúnebre… Não sabíamos porque não nos salvavam
Pedras caíam à nossa volta. Havia muita poeira. Sabíamos que a pirâmide iria ceder
Mesmo que os nossos rostos estivessem encobertos… tossíamos compulsivamente
Apenas conseguíamos encher os pulmões de oxigénio empoeirado para… Gritar!
Havia escassos intervalos em que não se escutava aquele timbre tão deprimente
E quem eram os insensíveis que nos deixavam aqui debaixo desta catacumba?
Poupem-me a misericórdia, não a peço… Mas salvem ao menos esta mulher
Esperava que tivessem escutado o meu suplício, pois não havia outra saída
Um novo abalo fez es-tre-me-cer tudo… se ela não me tivesse empurrado
Teria sido esmagado por um enorme pedregulho que caíra abruptamente
Éramos cingidos pelo desabar dos tempos em plena noite descomposta
E acarinhámo-nos mutuamente na altura da tão indesejada despedida
A partir de então deixámos de ouvir tambores… deixámos de ouvir
A Pirâmide…! continuava a ruir…! E não houve nenhum instante
Em que tivéssemos deixado de amar a Humanidade. E quem foi
Que esperou a Noite dos Vendavais para sorrir durante o caos?
Tu…! O teu nome… poderá ter vários significados, mas vejo
Apenas um… Coroada de Luz… aquela que nos concederá
A Salvação… Ide agora… A pirâmide vai finalmente ruir
Deixa-me ocupar o Trono Negro, é o meu compromisso
Não o vejo como sacrifício mas sim como uma bênção
Não me arrependerei de ter feito parte da tua história
É na escuridão que velarei sempre por ti, agora ide!
Tens pouco tempo para regressares ao teu mundo!
A areia fina caía sobre nós. Como era tão célere!
Ficaríamos os dois ali soterrados nas entranhas
Da Pirâmide que em breve… deixará de o ser
E quando alguém do exterior falou connosco
Tornámos a gritar acenando com os braços
E assim aquela voz divina nos localizaria
Perante aquela Tempestade de pedras e
De areia que já nos ia chegando pelos
Nossos joelhos. Esse mesmo alguém
Atirou uma corda… E de imediato
Lacei-a à tua cintura… e disse-te
Let me hold my Dearest Friend!
Now go up there…show them
Who you really are, my Lady
You said: how about you…?
I… I won’t leave you here!
Look Kelly, I’ll always be
With you… E libertei-te
Da areia… a pirâmide
Estava a ruir e eu…
Eu testemunhava
Essa travessia
Da alma e tu
Olhaste-me
Lágrimas
Ecoavam
Kelly C
A Luz
És tu
Tu
!

segunda-feira, outubro 23, 2006

Delirium (parte 1)

(Nota Prévia: Apesar desta ser a parte mais longa que já postei gostaria que a lessem com atenção e me dessem a vossa opinião. Estava difícil chegar a esta parte...)

Estava já no seu quarto pronta para dormir no aconchego da sua cama espaçosa. De roupão feito de linho e o Cisne Negro buscava no seu cérebro sentimentos de medo e angústia, sofrimento e dor, tristeza e alegria.
- Queria estar em casa agora…- murmurou profundamente.
Desejou ter cabelo para enrolar no dedo. O cansaço reteve a sua mão de o tentar, era tão inútil como o fugir dali. Jamais o conseguiria.
O sono tardava a surgir devido a essa teimosa inquietação. A Rinkinen sentia-se impelida por uma preocupação mental. O silêncio costumava pregar tais partidas.
Por entre reviravoltas distraídas no seu leito, a sua mente sugeriu-lhe um delicioso passeio pela divagação cristalina.
Assim o fez sem se restringir. Afastou os lençóis acetinados e levantou-se. Olhou em seu redor à procura de um motivo que a tranquilizasse. Não encontrara nenhum. Quase tudo o que ali havia não era seu pertence. Não lhe atraía de todo o aposento que lhe fora destinado. Assim como não lhe atraía viver na Montanha da Luz, por mais espaventosa e agradável que fosse. Não estava a ser ingrata, estava apenas a ser honesta.
Foi desse modo que partiu em busca de uma estabilidade que aquele espaço não lhe proporcionava. Seguiu um sentido tão embrionário como era o seu sexto sentido. Caminhou descalça em passos afincados. O chão poderia ser frio mas não ao ponto de contrariá-la. Por momentos sentira-se fora de si.
Quase sem se aperceber encontrava-se a vaguear pelo corredor principal do primeiro andar. Sentia-se uma espeleóloga sem causa. Abeirou-se a uma das muitas amplas janelas e foi aí percebeu qual a sua intenção: indagar o fenómeno que a Luz Frouxa causava em si. Prosseguiu para indagar o outro lado da sua realidade.
Perdeu-se em voltas labirínticas naquele Templo notabilizado pelos seus intermináveis halls e torreões geometricamente perfeitos. Poucos eram aqueles que tinham o privilégio de passear naquele tão imponente e tão restrito Templo.
A sua curiosidade furtiva levou-a uma grande sala com imensas cortinas de seda de várias cores que se movimentaram num sopro de ar. Sentira de imediato uma descarga friorenta a percorrer a sua pele.
Verificou a entrada que dava acesso a mais um salão. Caminhava lentamente de olhos elevados no fantástico tecto abaulado. Estava tão distraída que não tinha reparado que se encontrava num dormitório e que estava cercada de pessoas que dormiam tranquilamente.
A surpresa levou-lhe a mão à boca. Quando distinguiu aqueles corpos dormindo em inúmeras camas expostas em fila. A luz era diminuta, mas a suficiente para enxergar aqueles rostos. Não reconhecia nenhum deles. Eram todos adultos na casa dos vinte, trinta anos.
Não lhe pareceu razoável estar ali, sentia-se como uma infiltrada. E como não desejava causar nenhum distúrbio, seguiu em frente até a uma porta de madeira lustrosa. Caminhava de bico de pés para não acordar ninguém.
Entrou na divisão adstrita de costas voltadas, enquanto fechava a porta sem causar o mínimo ruído. Quando girou sobre si própria apercebera-se que tinha acabado de entrar noutro dormitório muito idêntico ao que tinha estado anteriormente. Desta feita os seus ocupantes aparentavam uma idade mais avançada.
- Estarei no Templo do Sono? – divagou pensativamente numa expressão patética. Só lhe faltaria encontrar um dormitório de crianças.
Tivera o mesmo pressentimento que a levantara da cama, a mesma sensação instintiva. Havia qualquer coisa que precisava ser descoberta, uma verdade escondida.
Escutou murmúrios vindos da primeira camarata. Voltou ao mesmo. Os seus passos foram mais lestos quando os seus ouvidos escutaram o estrépito acutilante de um jarrão de cerâmica que caíra ao chão e partira-se.
Entrou descaradamente esperando encontrar alguém acordado mas tal não se sucedeu. Porém sentiu a presença de alguém atrás de si. A princípio não conseguia ver para além o vulto de homem de elevada estatura.
- És tu avô?
Não obstante a pergunta da criança, o homem permaneceu calado, impávido e sereno. O seu silêncio dava a entender que não lhe constituíra nenhuma surpresa encontrá-la ali.
Seria um dos guardiães do Templo? O Cisne Negro tentara adivinhar sem se aproximar da pessoa que não conseguia distinguir com exactidão. Temia ouvir um sermão, ou não fosse o Povo do Cristal caracterizado pela sua disciplina austera.
O homem desviou os cascalhos do que antes era um jarrão para retirar um pequeno objecto cilíndrico que cabia na palma da mão. Fê-lo rolá-lo pelo chão até parar junto aos pés da criança. Era uma esfera prateada. Tocou-lhe considerando desde logo uma frivolidade.
Bocejou num profundo anseio. As suas pálpebras começavam a pesar-lhe. Esfregou os seus olhos sonolentos à medida que estranhava como ninguém tinha acordado, nenhum deles! Uma bebé de apenas dois anos não conseguia conceber tal descanso imperturbável.
O vulto ergueu-se fitando directamente a Rinkinen e falou-lhe numa língua que não compreendia.
- Ato Nuardi thaj Sictum…
Foi-lhe proporcionado enxergar com clareza quem estava ali consigo. Afinal não era um homem mas sim uma mulher lindíssima de longos cabelos doirados, um rosto angélico e um corpo esguio.
- Yamsh bei…- pronunciou numa voz absortamente doce colocando o dedo sobre os seus lábios finos.
A mensagem era clara. O silêncio. Abordou-o com exímia delicadeza. Apenas escutava o bater do seu coração.
- Tenho sono…- murmurou com a cabeça direccionada para o chão obscurecido.
Mirou aquela esfera prateada que magicamente se deslocou ligeiramente antes de libertar uma espécie de fumo espesso. A própria esfera tinha mudado de cor, já não era prateada mas sim negra.
Quis demandar à ninfa o que estava a acontecer quando inesperadamente esta se projectou violentamente na sua direcção. Na sua sonolência achou que tudo o que ela queria era segurar aquela esfera e reter os fumos que se estavam a espalhar tal e qual como o queimar de incenso.
Não obstante os seus engulhos medonhos revelavam o verdadeiro rosto daquela mulher. Jamais lhe poderia ser atribuída o estatuto de bela quando as suas órbitas eram desproporcionadas em relação ao seu rosto desfigurado. Numa perplexidade assustadora, a Rinkinen desatou a correr tentando fugir àquela criatura horrorosa. Podia escutar aquela voz exasperante e tinha a noção que ninguém ali iria socorrê-la. Pudera, estavam todos aprisionados num sono eterno.
Os passos titubeantes e olhos fechados da criança tornaram-se num grande perigo pois não sabia por onde se endereçava. Poderia ir contra uma parede, um pilar ou uma porta e magoar-se seriamente.
Fugiu na cegueira tão apavorada que, a dada altura, sentiu o chão a fugir-lhe dos pés. Afinal tinha descido um degrau das escadarias Viginti Tres. Apercebera-se tarde demais pois tinha colocado mal o pé nesse primeiro degrau e desequilibrou-se de tal forma que não conseguiu proteger-se do trambolhão. A luz do mundo cristalino apagou-se na vertigem e no embatimento da sua cabeça na dureza do mármore. Não houve tempo para evitá-lo, o seu corpo tinha rolado desamparadamente os vinte e três degraus só estagnando no rés-do-chão. Aquela queda abrupta deixara a bebé inanimada… o silêncio regressara em absoluto…

sábado, outubro 14, 2006

Viginti Tres (parte 4)


Mar-Hir abraçou-a numa infinita benevolência. Sentira-se tocado pela sensibilidade daquela criança tão nova e já lidava com as promiscuidades do karma.
- Felicito-te! És uma criança abençoada! - considerou colocando a mão sobre a cabeça da Rinkinen. - Estou certo que Mariah e Har-Meand irão rejubilar com a recepção desta tua primeira carta. – brincou no seu jeito mais paternal.
A memória do Pontífice era povoada por um número indeterminado de momentos como aquele. Momentos longínquos é certo, mas era aquela criança, nenhuma outra, que suscitava a leitura do memorial do seu passado. Jamais esqueceria o que se sente quando um pequeno ser nos chama de pai, pois já tinha tido um filho outrora. Nunca tinha sido avô. E agradava-lhe imenso tê-la como sua neta.
- E quanto a essas aves encantadoras a que chamamos gaeas… fica sabendo que são capazes de falar como se de uma pessoa se tratasse! – elucidou com ênfase.
De semblante boquiaberto, o Cisne Negro desejou ter uma gaea como companhia de forma a suprimir a solidão de que padecia.
Porém, na sua mais abreviada candura, reformulou o seu pensamento irreflectido. Jamais trocaria o amor pelos seus cisnes, mesmo que estes não proferissem palavras, por uma ave que falava por mais surpreendente que lhe pudesse parecer.
Pulou no seu modo tão distintivo imaginando-se um cisne a abrir as suas asas e a querer voar. Quantas vezes repetira os mesmos gestos e nunca conseguira aprender a voar?
- Ainda que… deixa-me dizer-te que tens alguns erros aqui, o que é perfeitamente normal. - interrompeu avassaladoramente o sonho espalhafatoso da criança. - Aliás surpreende-me o facto de serem tão poucos! – elogiou antes que fizesse um estrondoso burburinho acerca das suas falhas.
A Rinkinen quis saber onde tinha errado. Para além da sede de aprendizagem, herdava o perfeccionismo do seu pai. Tinha consciência que não dominava a pontuação, embora Asrae já lhe tivesse explicado.
Então, Mar-Hir corrigiu-a na sua voz mais pautada. Falou-lhe da questão dos acentos e dos sons que não tinha associado correctamente. Fez questão que pronunciasse verbalmente as palavras que se tinha equivocado para que lhe elucidasse quanto às sílabas referentes a esses sons, como fora o caso de “que-ro”, “jei-to” ou “ou-vis-te”.
- Diz-me pequeno Cisne... já és capaz de dizer anticonstitucionalmente? – desafiou com audácia.
- Anticonstitucionalmente. - repetiu magistralmente sem soletrar.
- Muito bem!
O Ancião cruzou os olhos com Asrae que ainda permanecia no topo das escadarias Viginti Tres. Numa comunicação telepática o Pontífice propôs-lhe que se retirasse para o cumprimento dos seus outros serviços. Além de ama do Cisne Negro, a Sacerdotisa dos cabelos claros dirigia um grupo de Iniciados e Acólitos no ensinamento da psicologia metafísica, que tem como base a origem e destino da alma.
- Acompanha-me num passeio. - sugeriu o avô harmoniosamente.
A criança seguiu-lhe os passos deliciada com a ideia de espairecer um pouco. Sempre era mais agradável do que estar fechada naquele silêncio templário quando lá fora a natureza sumptuosa e ruidosa chamava pelo seu nome.
Por outro lado assustava-lhe que, pelo caminho, alguém reparasse no seu cabelo curto. Era um suplício que atacava o seu espírito fragilizado. Para escapar ao constrangimento e à vergonha caminhava muito próximo do Pontífice tornando-se na sua sombra. Desse modo ninguém ousaria fazer troça de si.
Ultrapassaram um corredor onde estavam expostos frisos e baixos-relevos comemorando a arte medieval, os primórdios da Fundação daquela Tribo.
O grande clarão revelava que se encontravam no exterior. Eram ardentes os raios luminosos azuis transparentes emitidos pelo Grande Cristal, provenientes da Pirâmide de Cristal, bem no cume da montanha mais elevada de Atlântida.
Havia uma outra magnificência que se encontrava mesmo em frente. Era a estátua da Deusa Anfitrite de proporções descomunais, mais de duas dezenas de metros de altura, seguramente. Situava-se bem no centro daquela praça. Tal divindade fora esculpida para representar uma tranquilidade inabalável.
Nesse instante Mar-Hir confrontou-a com a seguinte pergunta:
- Estás a gostar de viver aqui? – averiguou querendo libertá-la dalguma inquietação que costumava estar patente na sua expressão.
- Às vezes sinto que são um pouco duros. Gostava de poder brincar com as outras crianças que aqui vivem. Raramente as vejo. – desabafou num suspiro. - O avô tem algum filho?
Entretanto um grupo de jovens iniciados passava-lhes pela direita a dez metros de distância tomando a direcção oposta. Impulsivamente o Cisne Negro acelerou o passo refugiando-se atrás de uma das pequenas estátuas de ninfas montadas sobre cavalos-marinhos.
- Tive um… - murmurou pensativamente sem se aperceber do súbito receio da Rinkinen.
- E onde está? O que lhe aconteceu…? – indagou sem ter a verdadeira noção do modo bastante informal com que lançara tais questões. Ninguém teria tal atrevimento perante Sua Santidade.
- Caiu…- respondera muito sucintamente desviando o olhar.
Chegaram até à extremidade daquela praça adjacente ao Templo e aí puderam apreciar a vista panorâmica do continente atlante, do mar Solahum, das ilhas mais próximas, do Monte Atlas, com a Venerada Sirtione, a Árvore da Vida, enraizada no seu cume, e bem lá no fundo os tons acinzentados das Montanhas Naavram. Aquele era, indubitavelmente, um ponto privilegiado de observação para toda a natureza envolvente.
O estrépito que se ouvia incessantemente provinha da enorme cascata denominada A Queda de um Anjo, a fronteira que dividia os reinos Rinkinen e Margrietus, com o Povo do Cristal estabelecido no coração de Atlântida, a cidadela de Poseídia, que culminava naquela Montanha da Luz.
Os quatro sinos da capela dos Anjos do Mar tocaram simultaneamente. Só nessa altura é que o tempo fora relembrado. Ambos voltaram a observar o topo da Grande Pirâmide. A luz prismática do Grande Cristal começara a diminuir comedidamente a sua exuberância. Era o começo do período do dia a que designavam A Luz Frouxa.
(Estejam atentos ao Próximo Capítulo: Delirium)

sexta-feira, outubro 06, 2006

Viginti Tres (parte 3)


Mar-Hir despedira-se do Peregrino da Luz com quem tinha estado a conversar. Todavia aquele que envergava as vestes atribuídas a um acólito permanecera na sombra daquele que cuja túnica era constituída por partículas de brilho diáfano. Equivocavam-se aqueles que julgavam que tal fulgor provinha do seu traje. Pura ilusão! Provinha do seu corpo, da sua mente clara.
- E o que direi ao mensageiro da corte Rinkinen?
- Direis que amanhã receberão a minha visita. - respondera sem qualquer tipo de provocação ou pretensiosismo.
O Pontífice tinha a noção do perigo que representava a sua recusa quanto à solicitação do Rei Barvaatus em receber a visita do Cisne Negro. Aquela não era de todo altura indicada para importuná-la com visitas de etiqueta que, até tinham o seu cunho de aborrecimento para um bebé de dois anos.
Afastou-se do Acólito numa prolixidade flutuante até à escadaria Viginti Tres tentando travar a correria tresloucada daquela criança.
- Mais devagar… - advertiu receando que algum dia ainda viesse a cair daqueles degraus.
Era uma escadaria de sete metros de largura caracterizada pela sua simplicidade elegante. Cada andar do Templo era separado por um lance de vinte e três degraus.
Asrae encostava-se ao parapeito do primeiro andar, junto ao corrimão de mármore. Não fez menção em descer, limitou-se em observá-los com o devido respeito. Sabia perfeitamente que havia uma maior empatia entre os dois. E no entanto era a ama quem passava mais tempo com a Rinkinen. Era a Sacerdotisa quem lhe estava a ensinar a ler, a escrever, a contar e até a nadar.
O Pontífice tinha uma participação na sua educação um pouco mais distanciada. Era essa a sua intenção de modo a não exigir demasiado de uma criança. Esperaria pelo momento certo para lhe ensinar os princípios cristalinos.
O Ancião e a criança encontravam-se no grande salão suportado por várias colunas em capitel. Por cima das suas cabeças, um tecto oitavado que reflectia os movimentos radiosos do Grande Cristal ao longo do dia proporcionando um deslumbrante espectáculo de luz. As paredes eram compostas por azulejos com pinturas sublimes que retratavam capítulos da História daquele povo tão misterioso. O chão em que caminhavam resplandecia como se fosse feito de cristal. O Cisne Negro ainda se sentia eclipsada por tão intensa luminosidade.
- Avô! Avô! – arregalou os olhos. - Escrevi a minha primeira carta! - exclamou numa imensurável azáfama mostrando-lhe o papiro escrito com a sua peculiar caligrafia. - Podes lê-la? Vá lá!
- Quanta pressa meu pequeno cisne… - comentou num susto sorrateiro. – Leio pois, para gáudio deste velho que chegou tarde para assistir a tão iluminado momento.
A menina definiu um sorriso consolador. Não poderia censurá-lo nem tão pouco odiá-lo. Bastava-lhe a sua presença para fazer desaparecer a sensação de desamparo tão profundo que sentia naquele monte angelical.
As mãos idosas pegaram gentilmente no papiro. Achava engraçado o facto das linhas tortas lembrarem um pouco a forma curva das asas de um cisne. Numa voz afectuosa começou a decifrar aqueles rabiscos:

“Querida Mãe, Querido Pai
Sim sou eu, estou a escreve-los a minha primeira carta. Nao sei se tou a escrever bem. Expero apanhar o geito.
Tenho tantas saudads vosas mas inda bem que nao estao ca oje porque a minha querida Rae cortou-me o cabelo outa vez. É ela que está a ajudar-me a excrever.
Pai tenho desenhad sempre que poso. Hum dia vou desenhar como tu, vais ver.
Mãe tenho sido bem tratada, dexcansa, houviste? Nao kero que chores mais, por favor.
Uma gaea ira entregarvos esta carta. Nao sabia que os pasaros falavam. Porque é que os meus cisnes nao falam comigo?
Nao tenho geito para despedidas. Amo-vos.”

Cisne Negro

terça-feira, outubro 03, 2006

Asas Rubras


Caros leitores do Lost-Keys

Apresento-vos um dos motivos porque tenho estado um pouco ausente. Esta é a capa de um livro de poesia que vai ser editado muito em breve. Não se entusiasmem em demasia, logo vos darei mais detalhes.
Quanto à história do Cisne Negro e no que diz respeito ao capítulo Viginti Tres, este ainda terá mais duas partes. Ainda estará para ser descoberto o significado em torno do 23. Be patient.
Agradeço a todos os que me visitam, àqueles que lêem os meus textos, aqueles que não lêem mas comentam, e aqueles que não comentam mas visitam este meu espaço perdido no universo da blogosfera.
Irei comentar os vossos espaços com a devida atenção, sempre que puder.

And for the record the woman in the book cover is the real Black Swan. Yes, she’s not just a character in this story. She’s more than that. “She is the Light, the Way that you only read about”.
I want to thank you for being such an inspiration, for all the support, for all the years we talk, all the conversations, all the sad and happy moments. The way I see it, we’ll never be apart because your smile is everything to me.

sábado, setembro 23, 2006

Viginti Tres (parte 2)


O entusiasmo da bebé era enaltecido pelo brilho dos seus olhos quando Asrae lhe entregava os utensílios necessários para escrever uma carta: uma folha de papiro e uma caneta de tinta permanente.
Ambas estavam sentadas junto àquela estapafúrdia escrivaninha aprimorada em vinhático que se encontrava colocada a um canto do quarto. A ocupar o centro estava a cama espaçosa onde inúmeros arcos em ascensão tinham sido incrustados na madeira sugerindo um longo trajecto em busca de uma consciência superior.
A parede à direita era coberta por duas janelas em ogiva ligeiramente afastadas, ou não tivesse aquele Templo o cognome de Templo das Janelas Duplas. O Cisne Negro ainda era nova para tentar perceber os desígnios das janelas em par.
Na parede mais afastada, a da esquerda, estava mobiliário bem trabalhado, uma estante povoada de livros dos mais diversos géneros. Fluía ali uma excessiva magnificência material e espiritual o que levava a crer que aquele não era de todo um aposento decorado para um bebé. Seguramente aquele amplo aconchego tinha pertencido a um estudioso, presumivelmente um Sacerdote.
A pequena criança pegava na caneta de um modo peculiar. Dobrava os dedos unidos da mesma forma que pegava num talher. Era de facto alimento para o seu conhecimento.
- Como vou começar… - pensou, rebuscando as palavras adequadas ao seu subconsciente. – Ah, já sei…
- Permites que veja o que estás escrevendo? - indagou a ama inclinando a cabeça para focar a tinta húmida que secava no papiro.
O Cisne Negro encheu a boca para lançar um não. Era tão engraçado o jeito como ela usava o não tão condignamente que Asrae não se sentiu incomodada com o secretismo imposto pela criança. A Rinkinen debruçara-se completamente sobre a folha de papiro de modo a protegê-la dos olhares de soslaio da Sacerdotisa.
A forma da sua caligrafia era pequena e desalinhada. Notou que estava a dar um espaço razoável entre as palavras. De início aparentava ser um descuido pela falta de prática que tinha em escrever com uma caneta tão fina como aquela. Os seus dedos seguravam-na num ímpeto descomedido para não distanciar demasiado as letras e consequentemente as palavras. Tinha treinado as formas de todas as letras no quadro preto que o seu pai lhe oferecera. Sentir-se-ia muito mais à vontade em escrever com um giz pois se se enganasse poderia servir-se do apagador enquanto que aquela caneta de tinta permanente deslizava na folha como se tivesse vida própria.
Asrae recuava a essa altura relembrando com ternura a reacção da bebé quando lhe entregara a primeira caixa com giz de várias cores.
- Porque não há giz preto? - demandou numa pretensão premente.
- Olha minha filha, não há porque o quadro é preto… se desenhares com um giz preto num quadro preto não conseguirás ver os traços. – explicou amavelmente.
- Mar-Hir era capaz, ele vê tudo…- comentou num breve devaneio. - No outro dia tava a mostrar-lhe a língua quando ele estava de costas e ele disse: “tens orgulho na tua língua. Irás aprender a usá-la com fulgor”.
O Cisne Negro continuava a escrever lenta e descontraidamente. Havia momentos em que a caneta parecia dançar sobre a folha de tão empenhados que aqueles dedos estavam. Mordeu o lábio inferior sinal comprometedor, pois perguntava-se se a sua ama estaria a ler-lhe os pensamentos. Tinha acabado de mencionar o seu nome na carta e não era nada abonatório. Estava a referir-se ao acto carinhoso de lhe ter cortado o cabelo. Contudo, soube disfarçar o constrangimento arremessando-lhe uma pergunta inocente.
- Como se excreve excrever?
- É fácil. Eu soletro para ti. E-S-C-R-E-V-E-R- indicou a ama.
O Cisne Negro escrevia através dos sons e raramente recorria à disponibilidade da sua ama em querer ajudá-la. Algumas das suas dúvidas mais frequentes estavam relacionadas com as semelhanças sonoras do “s” e do “x”, do “k” e do “q”, bastante utilizado na linguagem Rinkinen. Quanto à acentuação decidiu não colocar pois ainda não sabia ao certo como funcionava esse sistema que enfatizava sílabas.
Atribuía o pensamento relacionado com o seu pai escrevendo de um modo mais pincelado. Seria uma pintura meramente abstracta pois rapidamente saltou de um sorriso colorido para a uma figura mais tristonha e tresmalhada. Estava espelhado na sua intimidade o martírio da sua mãe. Por um instante interrompeu o intelecto da escrita. Mostrou-se bastante reticente em como terminar a carta. O nervosismo ordenou, teimosamente, a sua mão em busca de cabelo para encaracolar e não o encontrou.
Finalizou a carta sem mais demoras enquanto esboçava uma cara aflita.
- Tenho que fazer xixi!
Ainda pensou levar a carta consigo mas confiou em Asrae que não iria bisbilhotar. Atrás de si no canto perpendicular a bebé desviou uma cortina espessa de cor carmim que encobria a divisão sanitária.
- Não espreitar! - abanou vigorosamente a cabeça antes de entrar nesse compartimento privado.
Assim que voltou, já mais aliviada, a ama perguntou-lhe com curiosidade na sua voz:
- Não vais deixar que corrija a tua carta?
- Não. Quero que seja o avô a corrigi-la. - respondeu com prontidão.
- Está certo. Vamos procurá-lo. - levantou-se cedendo à vontade da criança.
As duas saíram do quarto encontrando uma acalmia que se expandia ao longo daquele corredor luminoso. Enquanto caminhavam num ritmo lento pleno de admiração, o Cisne Negro jurou ter escutado lá bem no fundo daquele silêncio a voz inconfundível de Mar-Hir.
- Ele já chegou! - anunciou vivamente de sobrancelhas frisadas.
E lá foi ela a correr com a folha de papiro na mão direita. Era impelida pela linguagem serena própria do Ancião que se encontrava a dialogar com alguém no rés-do-chão.
A criança estava tão eufórica que descera precipitadamente os vinte e três degraus até ao piso inferior. Asrae já lhe tinha ensinado a contar até vinte e três na língua Rinkinen. Era uma prática quotidiana. Aproveitavam-se dessa escadaria para exercitar a aprendizagem dos números. Desta feita os números foram ignorados em favor das letras, da carta que tinha acabado de escrever, a sua primeira carta.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Viginti Tres (parte 1)

A luz cristalina girava durante o tempo irredutível. Quarenta dias passaram desde o segundo aniversário do Cisne Negro.
Os seus olhos pardacentos estavam mais afastados do solo. Era uma consequência natural, a ampliação do seu centro de gravidade. As suas feições tinham mudado pois encontrava-se mais magra. Era uma evidência clara, tanto que as suas bochechas já não estavam tão salientes. Mar-Hir já não as puxava carinhosamente como era seu costume. Há hábitos que se perdem com a idade mas prontamente outros tomam o seu lugar. Como o hábito espontâneo que o Cisne Negro tinha em sorrir fora substituído pelo hábito do desgosto por estar tão distante da sua casa, dos seus pais.
O Pontífice era vigilante e perscrutava que tal abatimento estava a prejudicá-la. Nem sempre viver na Luz significaria estar imune a qualquer vendaval de obscuridade. Analisava o seu crescimento em termos de conhecimento adquirido. Mesmo já usando um vasto vocabulário, a sua aprendizagem estava a ser mais comedido do que nos seus primeiros meses de vida. Também não era de todo aconselhável ter mais pressa que o próprio tempo. O Pontífice era paciente.
- Habituar-se-á a viver próximo da Claridade Absoluta... – reafirmava convictamente o Ancião. - Serei o pavio que acenderá a chama da sua determinação.
A vida daquele inocente bebé era totalmente controlada pelo Povo do Cristal, principalmente por Asrae, que funcionava como a sua sombra e Mar-Hir como a sua luz que intercedia de quando em vez para embalá-la.
Era notório que se sentia enclausurada num exílio onde todos eram muito mais velhos. Não tinha companhia de ninguém da sua idade com quem pudesse conversar ou até brincar, caso se lhes fosse permitido tal veleidade.
Os únicos dias em que aliava a sua disposição ao brio eram os dias em que recebia a visita dos seus pais. Ou então quando visitava o Templo da Iniciação. O contacto com outras crianças cativava-lhe o espírito mais perspicaz. A sua lábia tornava-se muito mais aprimorada e agia de um modo completamente desinibido. Esses eram factores decisivos para os anos vindouros.

Na Montanha da Luz
O Cisne Negro estava alojada no primeiro andar do Templo da Luz. Havia um corredor iluminado por trinta e seis janelas rectangulares intencionalmente distribuídas aos pares. O seu quarto situava-se no flanco esquerdo desse corredor, precisamente no seu limiar.
Para lá da porta escutava-se o ruído incisivo de uma tesoura. Eram os dedos insensíveis de Asrae que seguravam tal instrumento. Tinha acabado de cortar o cabelo à bebé. A Rinkinen pegava num espelho redondo lobrigando o seu couro cabeludo com receio de se assustar. O seu trejeito impetuoso era demonstrativo do quanto detestava ter perdido os seus preciosos cabelos encaracolados. Achava, na sua mais imaculada inocência, que os seus oito cisnes a detestavam de cabelo tão curto. Era como se tivesse perdido as suas penas e deixasse de pertencer ao grupo.
Para o Cisne Negro poderia ser um acto cruel mas era um daqueles males necessários. Era a única forma de perder o tique de enrolar o cabelo no dedo. Essa peculiaridade retirava-a concentração, de se perder em constantes divagações. Ali nenhum tipo de inércia ascética seria permitido. Esse era um dos mandamentos do Povo do Cristal que tinha não só aprender como seguir. O que era contraditório pois eram um Povo que vivia afastado do tumulto, não intervinham nas frequentes divergências dos dois reinos.
A bebé na sua perfeita ingenuidade considerava tamanha rigidez, um autêntico absurdo. Era-lhe de difícil compressão a disciplina cristalina. E em abono da verdade aquele não era de todo um lugar para crianças de dois anos, fossem Rinkinens ou Margrietus. As únicas crianças filhos do Povo de Cristal eram mantidos sob o mesmo regime que o Cisne Negro: uma exígua convivência colectiva que se traduzia numa descabida dose de solidão em prol de um maior aprofundamento espiritual.
Ambas envergavam indumentárias que desciam até aos pés e eram ajustadas por cintos largos prateados. Ao Cisne Negro foi-lhe atribuída uma dessas vestes simplificadas de tom azul cândido, característica de quem servia a causa templária.
- Porque me estás a pentear? Não tenho cabelo nenhum para ser penteado! - exacerbava, olhando através do espelho invejando-lhe o cabelo longo e luminoso.
Asrae apenas respondera com o seu silêncio. Já não era a primeira vez que se encontravam naquela situação. No entender da Sacerdotisa a teimosia da bebé não iria levar a avante. Insistiu em compor-lhe o cabelo.
- Porque tenho que parecer um menino? - questionou no seu aborrecimento ao encarar aquela visão aterradora caída no chão arroxeado.
- Já te dei a resposta. – suspirou cautelosamente. - Tens a tendência em te distraíres sempre que recorres a esse tique de enrolar o cabelo no dedo. É desnecessário tal exercício, o teu cabelo já cresce encaracolado.
A Sacerdotisa da Luz notou que talvez as suas palavras tivessem saído demasiado rudes da sua boca. Por momentos esquecera-se que era a sua ama, não sua instrutora. Esquecera-se do que as crianças da sua idade necessitam, amor e conforto. Por entre o oblívio, Asrae encontrara um motivo que empolgaria a bebé de tal forma que seria a própria a esquecer-se da lástima de ter perdido momentaneamente o seu cabelo.
- Não querias escrever a tua primeira carta? Que tal começarmos agora mesmo. - definiu num sorriso encorajador.
Após a mágoa a expressão facial do Cisne Negro era colorida por um distinto contentamento. Saltou da cadeira impulsionada pela vontade em escrever para os seus pais.

quinta-feira, setembro 07, 2006

A dor da despedida prematura (parte 3)


A voz de Mariah tinha sofrido algumas oscilações durante aquele hino verdadeiramente inspirador. Se no início as suas entoações soaram incrivelmente límpidas para a ocasião, no último trecho as notas saíram-lhe vacilantes, quase ao ponto de se descontrolar de tão fragilizada que se encontrava. Mas não foi o que se sucedeu, pois baseou-se na estabilidade que a sua mãe Alissa mantivera ao longo da sua vida. Inevitavelmente a sua garganta secara quando apareceu no anexo exterior segurando a sua filha com firmeza.
Mar-Hir teria felicitado Mariah pela revelação da sua voz de soprano, considerando até que estaria à altura do Coro Cristalino, um grupo de monges que cantavam aos Deuses. Teria felicitado Mariah pelo cântico escolhido, porém felicidade era um estado que não fluía no seu coração, nem no de Har-Meand, nem tão pouco do Cisne Negro. A bebé estava virada de costas com o seu rosto aninhado no pescoço da sua mãe que por momentos tremia de emoção pela despedida indesejada.
- Preparei-lhe uma merenda e uma cesta com roupa dela… - disse ainda a recuperar o fôlego.
Prontamente Mar-Hir lançou um aceno direccionado para o veleiro para que dois dos seus marinheiros fossem recolher os mantimentos.
Seguiram-se os instantes finais daquela despedida. Har-Meand aproximara-se da sua esposa e filha que permaneciam entrelaçadas. Observou-as intimamente para, num gesto afectuoso, beijar a testa de ambas. Os Rinkinens seguiram à risca as recomendações daquele louvável cântico: uniram as mãos. A junção só se completaria a partir do momento em que fechassem os olhos para juntos se perderem por caminhos afoitos.
O Ancião e a Sacerdotisa permaneciam a uma relativa distância, esperando como mordomos. Era em circunstâncias confidentes como aquela que Mar-Hir preferia não ter que ler e sentir a mente das pessoas como o fazia inconscientemente.
Havia um propósito afinal de contas. Em torno do sofrimento marcado naqueles rostos havia um pensamento elevado, havia um dogma a preservar. Todos os que estavam ali presentes sabiam que o que estava a ser decidido ali naquela despedida era muito mais que o futuro do Cisne Negro.
Quando os Rinkinens regressaram ao mundo real os seus olhos brilhavam como cristais e as lágrimas pingavam demoradamente como se fossem gotas a escorrerem de estalactites.
- Deixa-me pegar nela…- disse Har-Meand limpando os seus olhos marejados.
Mariah assim consentiu. O pai pegara na sua filha numa atenção redobrada. Sorriu-lhe um ligeiro entusiasmo naquele momento pós-clímax.
Seguidamente elogiou o seu crescimento, os seus olhos azul-cinza mais escuros que os seus. Tocou nas faces lisas que já não estavam sujas do carvão aquando da brincadeira de há pouco. Estava bem aprumada, talvez em demasia para um bebé. De cabelo arranjado e envergando um distinto vestido branco livre de mangas, mais parecia uma princesa… e, de facto, era, aos olhos de Mariah que tivera todo aquele cuidado em produzi-la em tão pouco tempo.
Har-Meand fitou a sua esposa num semblante indicativo de que estava na hora da sua filha partir. A mulher moveu-se numa altura em que se escutava um gorjear colectivo. Eram os cisnes que vinham se despedir da sua amiga. Surgiam da esquina daquela fachada como que a pressentir que a bebé iria viajar para bem longe e não voltaria tão cedo.
Mariah olhou de relance para o Pontífice e antes que a pergunta lhe saísse dos lábios finos já Mar-Hir tinha dado a resposta.
- Os cisnes acompanharão o Cisne Negro. – declarou redundantemente.
O grupo de atlantes caminhou, num silêncio absoluto, os quinhentos metros pelo passadiço de pedra que os levava até ao porto. Atrás seguiam os cisnes numa fila invulgarmente ordeira.
A Rinkinen ergueu corajosamente a cabeça e entregou a sua filha nos braços da estria Asrae que lhe afagou as costas tentando pacificá-la.
Estava tudo preparado para partir, era só uma questão de dar o último passo, subir para a embarcação.
- Voltaremos a ver-nos muito em breve. - disse suavemente o Ancião do Povo do Cristal em jeito de despedida.
Os cisnes subiam para o interior da embarcação. Os marinheiros contaram oito, seis negros e dois brancos. Rapidamente foram colocados numa zona onde pudessem estar mais à vontade.
- Que os Deuses velem por ti minha filha…- murmurou Har-Meand abraçando-se à sua mulher.
O Cisne Negro sentiu-se desamparada que num movimento repentino, esbracejou violentamente para se libertar de Asrae. Assim que os seus pés tocaram no chão rodopiara bruscamente para voltar a correr para a sua mãe.
- Mãe, não! - agarrou-se ao braço da sua mãe, puxando em simultâneo o seu pai para junto de si enquanto chorava como uma torneira mal fechada.
No centro daquele turbilhão de sensações estava uma bebé de apenas oito meses e como seria óbvio não saberia lidar com a dificuldade da separação dos seus pais.
Nem Mariah nem Har-Meand, nem tão pouco os Sacerdotes da Luz tinham ficado indiferentes a tão instintivo pranto. Todavia seria necessário colocar algodão nos ouvidos e agir em conformidade por mais que lhes custasse.
Mariah achou não ser possível conter tamanha sofreguidão. Ainda assim encontrou forças no último esconderijo da sua alma.
- Nós visitar-te-emos, jamais te abandonarei minha filha…- inclinou a cabeça tentando explicar-lhe a quem tinha um raciocínio travado por impulsos .
Mar-Hir teve que actuar com providência para não correr o risco da bebé odiá-lo irremediavelmente. Estendeu a sua mão áspera e proferiu palavras de encorajamento.
- Vinde Cisne Negro, mostrar-vos-ei o vosso caminho, a vossa rota. Sofrer não significará a vossa derrota.
A bebé olhou pelo canto do olho aquela figura que lhe fora sempre fraterna e num ápice parara de chorar. Era como que só a voz do Ancião a serenava da mesma forma que a sua mãe. Acabou por aceitar, ainda que timidamente, a mão do seu “avô”. Embarcariam sem olhar para trás.
- Levar-te-ei ao Templo dos Sonhos…- prometera o Pontífice já na proa da embarcação.
Rapidamente o veleiro de três mastros zarpara e desaparecera no horizonte do Mar Solahum.
- Viveremos dias de luz frouxa absoluta…- pronunciou Mariah libertando o extremo pesar que havia conseguido reter por escassos instantes.
Aquela mãe, como qualquer outra que via a sua filha ser-lhe retirada tão cedo, almejava palmilhar a nado a rota da sua bebé caso fosse necessário.
- Viveremos com a esperança de um futuro brilhante para a nossa filha, para Atlântida. - replicou Har-Meand numa postura mais equilibrada.
(Próximo Capítulo: Viginti Tres: A Queda do Cisne Negro)

domingo, setembro 03, 2006

A dor da despedida prematura (parte 2)


O anexo exterior era composto por uma mesa de madeira com seis cadeiras. Havia plantas trepadeiras nos quatro cantos. Eram designadas flores de cera, as que embelezavam aquele espaço à beira-mar plantado.
O Ancião da Luz virou-se calmamente para a entrada ao escutar os passos apressados de Har-Meand.
- Desculpai a demora. Sabeis como é… - verbalizou num formalismo prosaico. - Desejardes tomar um chá? - perguntou o Rinkinen num gesto de cortesia.
- Não vos incomodeis. - dispensou num sorriso amistoso. – E não vos apresseis. – falou serenamente numa expressão sincera.
Har-Meand entreolhou os dois Sacerdotes do Cristal para depois espreitar para o interior da sua casa.
- É melhor que isto seja rápido…- murmurou friamente.
Mar-Hir também era da mesma opinião embora, por respeito, não fizesse transparecer tal disposição.
Para colmatar a tensão que pairava no ar, Asrae intercedia mostrando ao pai do Cisne Negro um pergaminho.
- Como já vos anunciei, precisarão de uma licença especial para entrar no Templo Luz. Aqui está a licença.
Har-Meand recebera das mãos da ama da sua filha uma permissão escrita na língua do Povo do Cristal na parte superior e abaixo o equivalente no idioma dos Rinkinens.
- Inicialmente tereis direito a duas visitas por semana. - declarara firmemente o Ancião mantendo contacto visual com a consonância do pai da Protegida.

No seio do lar, mãe e filha já tinham comido pão-de-ló e bebido chá preto, totalmente fermentado. Mariah levantou-se para preparar uma merenda. Se ia sacrificar a sua filha não a deixaria faminta mesmo sabendo que haveria provisões na embarcação do Pontífice.
Estava a colocar mangas dentro de uma pequena cesta feita pelas suas próprias ardilosas mãos. O Cisne Negro olhava em silêncio os movimentos titubeantes da sua mãe. Encontrava-se num estado manifestamente plangente tentando exteriorizar uma figura estrénua. O olhar da bebé que era indivisível da sua progenitora causava uma dor extrema que a mulher poisou uma vasilha para defrontá-lo objectivamente.
- Vais fazer uma viagem filha…- respondera com um ar macambúzio retendo o brotar de lágrimas a todo o custo.
- Mãe…
A respiração estertorosa da sua mãe deixava a bebé insegura. Prontamente Mariah aconchegou-a o no seu peito como se fosse um animal ferido. Solfejou para aliviar a amargura. Entoou palavras que a sua mãe Alissa ensinara quando era uma menina desconhecedora da força emocional que tal cantiga sagrada desencadeava.


Pela linha de água da minha nascença
Forma-se o riacho da minha infância
Onde flui o rio da minha juventude
Que desagua no mar da minha vida adulta
E só quando alargar o meu conhecimento
Ondularei no oceano da minha velhice
E à nova geração passarei o ensinamento
Terei alcançado, então, a plenitude

Que a aprendizagem se estenda
Cada dia é um novo dia
Que a nossa mente compreenda
O que é viver em harmonia
Pela luz do Grande Cristal que nos guia
Abençoado o mundo pela sua Benevolência
Zénite da Claridade, Religião da Condolência

Nós, que somos as crianças de honor
Representantes de um futuro pronunciado
Difundimos o Sinal da Esperança,
Nós, que somos as crianças do amor
Daremos as nossas mãos
A favor da União!


(Nota: Este mesmo cântico seria declamado pela Princesa Dolphinya na véspera de uma tragédia, cerca de 400 anos depois do nascimento do Cisne Negro)

quarta-feira, agosto 30, 2006

A dor da despedida prematura (parte 1)


Mariah já vinha sofrendo por antecipação mesmo antes do nascimento do Cisne Negro. Talvez por isso o parto tenha sido tão complicado. Nunca escondera a consternação e austeridade a partir do momento em que Mar-Hir lhe comunicara tais premonições.
- Seja bem-vindo Pontífice!
Sem demoras, Har-Meand aproximou-se para cumprimentá-lo com uma cerimoniosa vénia.
O Ancião do Cristal retribuiu com um leve aceno, quedando-se à entrada. A sua análise fora instantânea. Perscrutou a disponibilidade de Har-Meand, a perplexidade da sua esposa e o sorriso bastante forçado do Cisne Negro, sentada no banco. A bebé que costumava correr para os seus braços tendo-o como um avó, desta vez não conseguia encará-lo. Mar-Hir leu o medo na sua mente, sentia-se encurralada.
- Dar-vos-ei o tempo que precisarem. – pigarreou. - Estarei lá fora. - comunicara num tom de voz mais sisudo não querendo parecer demasiado abusivo.
Afinal de contas encontrara-os ainda com as suas vestes de dormir. Teria chegado cedo demais? Certamente era visto como um homem impiedoso. Ele próprio tinha plena consciência que, de uma forma ou de outra, estaria a encarnar um ser sem escrúpulos. Contudo, à luz dos seus olhos claros não lhe era apresentada outra alternativa viável. Agia como um eterno servo da sua clarividência.
Em passos lentos regressou ao exterior daquela moradia típica da Ilha Cabassus. Eram rectangulares pintadas em tons pastel. A maioria era composta com anexos exteriores, alguns cobertos, outros a céu aberto como era o caso. Dali podia apreciar a vista desafogada para o mar que vibrava ali não muito distante dos seus pés firmes.
Asrae, uma senhora que agia com descrição, como era apanágio do Povo de Cristal, surgia a seu lado. Mar-Hir tinha pressentido a aproximação de tal luz arguta. A Sacerdotisa de cabelos de um loiro abatido e vestes cinzentas interrompia respeitosamente os pensamentos do seu Mestre. Serviu-se de um dos seus ensinamentos, a comunicação dor telepatia.
- Será prematuro levá-la aos oito meses para o Templo da Luz?
- Mais vale ser prematuro do que tardio. - respondia laconicamente usando o mesmo método psíquico.
- Sabeis que a dor da separação irá amedrontá-la. – murmurou Asrae sobre uma evidente consequência que o Pontífice já havia previsto.
Ambos estavam conscientes dos votos que juraram perante os Deuses do Mar: guiá-la na rota do seu destino, na mágoa e no sofrimento, na alegria e na glória. Se entre os dois Elementos da Luz subsistia aquela sensação introspectiva, lá dentro, na moradia dos Rinkinens, o ambiente era definido pela dor de uma despedida prematura.
Har-Meand, que acabara de vestir uma túnica de linho castanho costurada pela sua mulher, tentava apaziguar tal vinculada angústia.
- Visitá-la-emos de tempos em tempos…
- Não é a mesma coisa. Ela é muito nova, precisa de sentir o calor de uma mãe!
A sua agitação era natural para uma mãe que a teve na barriga por um ano e agora iria deixá-la aos cuidados de um velho que seria, na sua óptica, um louco.
- E de um pai…- retorquia o pintor pegando na mão da sua filha.
Mostrou-lhe o retrato que tinha delineado enquanto ela e sua mãe tinha estado dormir.
Mariah estava por detrás dele, junto ao guarda-fato. Tinha acabado de escolher um modesto vestido negro para receber tão ilustre visita.
- E porque não nos avisou que vinha hoje roubar-nos a nossa filha? - queixou-se deliberadamente num tom provocatório.
O seu marido olhou-a de relance sem dar muita importância a tal desaforo. Preferia aproveitar aquele momento de um modo pacífico. Sentara-se no banco com o Cisne Negro no seu colo.
- Acho que podes terminar aqui este contorno. Toma, o pai ajuda.
O Cisne Negro recebera um lápis de carvão e estaria a rabiscar ao acaso não estivesse a mão habilidosa de Har-Meand a dirigi-la no traçado do seu cabelo encaracolado, negro como o próprio carvão.
A bebé continuava em silêncio. Normalmente estaria a divertir-se a pintar durante um tempo indeterminado. Naquela ocasião demonstrava algum aborrecimento. O seu pai apercebera-se na sua pouca vontade. Sentia-a como uma luz frouxa, exactamente o período do dia em que tinha nascido.
- Ela não pode ir de estômago vazio. – indicou a mãe numa voz enfraquecida.
Àquela altura estava, finalmente, convencida de não poderia contrariar a sua partida. Desejava impedi-lo mas não se atreveria.
Har-Meand baixou os braços fazendo menção de se levantar com a sua filha quando Mariah lhe sugeriu que fosse ao encontro do Pontífice enquanto as duas iriam tomar o pequeno-almoço. Concordou, admitindo que aquele momento deveria ser aproveitado entre as duas.
- Mas primeiro tens que lavar as mãos… - pegou no lápis de carvão. - … e o rosto também! – gracejou ao sujar propositadamente o rosto da sua filha com carvão.
O Cisne Negro esboçou um sorriso efémero. Sentia que aquele seria o dia mais triste da sua vida. O primeiro dos muitos que se seguirão.

sábado, agosto 26, 2006

O Dia chegou... (parte 3)


Durante o silêncio clamoroso que se seguiu, Mariah inclinou o corpo, já refeito da gravidez, procurando saber qual o verdadeiro motivo da inércia do Cisne Negro. Era minimamente perceptível que estava acordada no entanto mais parecia que estava a dormir de olhos abertos. O rosto estava demasiado descorado, realçando ainda mais aquele aspecto sombrio.
A sua mãe é que não perdera tempo em tentar adivinhar, qual profetisa convicta de que poderia ler a mente da sua filha. Seria o tão falado instinto maternal a agir em desespero de causa.
- Ela sabe que vai embora… é injusto a nossa filha ser-nos retirada assim! Não está certo!- recalcitrou revoltando a colcha e lençóis de um rosa mais claro que a matiz afogueada da sua pele quando perdia o controlo emocional.
Har-Meand levantava-se movendo a cabeça negativamente considerando que Mariah estava a deixá-la ainda mais atemorizada. O pintor baseava-se numa condescendência em relação ao futuro da sua filha, o que não poderia ser traduzida pela falta de amor que nutria por ela. Amava-a até mais que a sua própria vida e no entanto era muito mais comedido que a sua mulher.
- Não existe justiça nem injustiça aqui. É o que tem que ser feito, é a vontade dos Deuses.
- É a vontade de Mar-Hir queres dizer! - resmungara Mariah elevando o tom da sua voz atirando uma almofada para o chão emadeirado.
De um momento para o outro o seu rosto empalidecera ao denotar que os seus gestos veementes afastaram a sua filha para o canto da cama. A mãe extremamente zelosa, mimava com afagos sucessivos nos cabelos encaracolados da sua mais-que-tudo.
- O Pontífice Mar-Hir acredita ser esse o seu karma e consequentemente o nosso. Sabes muito bem que tudo foi feito para impedir que ela nascesse durante a Luz Frouxa e…- Har-Meand voltara-se a sentar na cama junto ao Cisne Negro encarando-a. - … foi esse o seu destino! Temos que ser mais tolerantes. Acredito que a nossa filha terá um papel preponderante no futuro de Atlântida.
O Cisne Negro permanecia entregue à tal expressão vazia embora já não estivesse naquela posição contraída como se fosse uma tartaruga a esconder-se na sua carapaça. Levantou-se espontaneamente, tomando a direcção da janela. Subiu o banco redondo onde o seu pai se sentava para pintar e esgueirou-se para o exterior. O seu olhar fixava o horizonte marítimo. Era como se o mar a tivesse chamado pelo seu nome, o seu verdadeiro nome, não a alcunha que fora atribuída.
Mariah e Har-Meand fizeram menção de ir atrás dela pois corria o risco de cair mas o seu sinal fora para que se afastassem. Deixaram-na estar considerando que lhe fazia bem receber aquela fresca aragem matinal.
- Porque temos que seguir tudo o que Mar-Hir nos diz? Porque temos que seguir as suas ilusões, fantasias, sonhos?- contestava Mariah insistindo com aquela discussão mantendo a devida atenção na sua filha.
- Para travar esta realidade, guerra, pesadelo!- contrapôs Har-Meand.
No quarto ao lado estava Asrae, que ouvia a discussão sem ter como o evitar. Nem se atreveria a participar, pois o Povo do Cristal era conhecido por serem meros observadores e não intervenientes dos problemas alheios.
A tensão do Cisne Negro avistava a aproximação de um veleiro numa altura em que o seu pai criticava o seu próprio reino sem sentir pudor algum.
- Vivemos tempos conturbados, os dois reinos conspiram na escuridão…- tomou uma pausa reflectiva. - … a guerra pode eclodir a qualquer momento…!
Har-Meand não confiava na serenidade de Suas Majestades desde o nascimento da sua filha. O seu cepticismo aumentara aquando das suas visitas, principalmente naquele momento em teve que desenhar sobre a tela um retrato do Rei e da Rainha segurando a sua filha.
- Barvaatus pode ser tão maquiavélico como aquele que se senta no trono dos Margrietus. Quanto à Rainha Rinna não lhe perscruto nada, permanece na sua sombra.
Tais pensamentos revelados demonstravam o quanto Har-Meand não era adepto da função da realeza mas sim da religião.
Chocada, pelo seu marido ter cuspido todos aqueles disparates contra a corte, Mariah não se desviara do que estava em causa.
- Como Mar-Hir está tão seguro do futuro da nossa filha? Que premonição terá visto para crer que ela é a divina representação da paz… afinal de contas não sabemos nada!
Entretanto houve um vulto que apareceu junto à porta semi-aberta. Mariah apanhara um susto de coração. O Cisne Negro virava-se sabendo de antemão de quem se tratava. Não era a Sacerdotisa Asrae como os seus pais supunham.
- O futuro é imperceptível… mesmo para mim… - falou calmamente uma voz envelhecida pelo tempo.
Por detrás da porta aparecia um senhor alto de roupagens imaculadas e longo cabelo grisalho.
- Pontífice Mar-Hir…- Mariah engolira em seco
- Perdoai-me o aparecimento repentino mas… chegou o dia…
E instantaneamente Mariah sentiu uma pontada lancinante no peito como se tivessem a comer o seu coração à dentada.
(Próximo Capítulo: "A Dor da Despedida Prematura")

segunda-feira, agosto 21, 2006

O Dia chegou... (parte 2)


O célere veleiro tomava a direcção sudoeste. O destino é a ilha Cabassus, onde vivem os pais da Predestinada. Será hoje que os primeiros fios do seu karma serão tecidos. Iniciar-se-á no Templo da Luz com apenas oito meses. É fundamental habituar-se desde tenra idade a estar tão perto da Luminosidade Absoluta para que dê asas à perspicácia que já vai demonstrando.
O tão falado dia chegara antes do previsto. O fatalismo é inadiável.

Na ilha Cabassus
Um aprazível aroma de incenso fluía no quarto. Ambos os reinos praticavam os seus rituais de devoção e superstição. O arder incenso era um desses actos de fé próprios dos Rinkinens. Dizia-se que, acima de tudo, atraía o bom augúrio. Mal sabia Har-Meand que, ao acendê-lo, o efeito seria exactamente o oposto.
O alvor cristalino incidia sobre mãe e filha sempre inseparáveis. Har-Meand tinha puxado a cortina azul-turquesa e abrira a janela convidando a translucidez a entrar em sua casa. Uma moradia de artistas numa ilha maioritariamente povoada por artistas de diversas áreas.
O homem de rosto largo, queixo forte e cabelo negro bem aparado, moveu-se no silêncio para não perturbar aquele leito de tranquilidade em que a sua mulher e filha se encontravam.
Permanecera junto à janela, quando decidiu começar a rabiscar na sua tela. Sentara-se num banco redondo e de imediato começou a delinear os primeiros traços de mais um retrato.
Do outro lado do quarto estavam Mariah e o Cisne Negro bem aconchegadas numa cama exposta na horizontal. Era de madeira com insígnias atribuídas à linguagem rinkinen. As paredes brancas eram cobertas com alguns quadros com flores pintadas a óleo. A contrastar com esses quadros de tons pitorescos haviam outros dois mais significativos. Foram desenhados a carvão e estavam expostos na parede onde a cama estava encostada. Um mostrava o Cisne Negro deitada no berço manifestando a sua extrema boa disposição. O outro era nada mais que uma visão cómica, uma caricatura de Mariah com um corpo imperceptível, a não ser a sua barriga oval, e uma cabeça a ocupar quase todo o espaço da tela exibindo uns lábios exageradamente carnudos. Fora desenhado durante a gravidez de Mariah que durou doze meses.
Na verdade os lábios de Mariah eram finos, o seu rosto pálido facilmente enrubescido consoante as suas reacções emotivas, os seus cabelos não muito longos eram de coloração louro-acastanhada, os seus olhos verde-montanha eram uma perdição, tanto que ofuscavam as suas sobrancelhas pouco visíveis.
Após alguns minutos de gestos executados sobre a tela, a mão de Har-Meand parara repentinamente. Mariah finalmente mudara de posição ligeiramente atordoada com aquele luzir diáfano. Constatou que o Cisne Negro já estava acordado permanecendo imóvel, de olhos bem abertos. Nessa altura já Har-Meand tinha o esboço elaborado. Iria terminá-lo posteriormente. Aquele quadro serviria de estímulo quando a sua filha já não estivesse ali na sua companhia.
O pintor voltou para a cama puxando a colcha toldada por um rosa escuro. Desviou uma das almofadas com desenhos bordados pela sua mulher, para beijar a testa da sua filha que expressava um ar pleno de mistério.
- Então filha que tens? Tens frio? Tens fome?- perguntara deliberadamente a mãe ao afagar carinhosamente o braço da sua filha.
- Não… Ele vem aí…
A resposta saíra seca da boca do Cisne Negro que estava deitada de lado com o corpo encolhido. Teria mesmo respondido? Ainda era muito nova, ainda estava a começar a falar. Por vezes os seus pais tinham uma vaga sensação de que alguém falara por si. Pudera, o seu crescimento estava a efectuar-se de um forma estonteante, deixando-os à deriva num mar de espanto.
- Ainda deve estar ensonada…- considerou Har-Meand, afastando-se um pouco para lhe dar espaço.

quinta-feira, agosto 17, 2006

O Dia chegou... (parte 1)

O vento trazia de bom grado o som do sino dos anjos da Basílica Anjira. Escutei doze badaladas criando fugazes vibrações no veleiro onde me encontrava. O tempo decorria na sua inevitabilidade, até mesmo para este ancião que já não se recorda ao certo da sua idade…
Não forçarei a minha mente a esse raciocínio, há assuntos mais proeminentes em causa. Não posso descurar da minha missão: proteger o Cisne Negro, indicando-lhe quais os caminhos da Luz e os da Sombra. Chegará uma altura em que ela tomará as suas opções para o bem ou para o mal.
O tempo urge… oito meses passaram desde o seu nascimento. E, naturalmente, crescera bastante após aquele dia tão invulgar. Fora o mesmo tempo que a tornara numa menina traquina. Exibia um sorriso inocente dando a conhecer os seus recém-nascidos dentes. As maçãs do seu rosto estavam permanentemente ruborizadas, os seus olhos eram, na mais surrealista das naturezas, toldados de um sombrio azul-cinza característicos dos Rinkinens e os seus cabelos negros caíam aos caracóis. Um anjo rebelde, sé é que ainda existiam anjos.
Rapidamente aprendera a caminhar por si própria, de tão endiabrada que era, desejando ver o mundo de um ponto mais alto. Prestava-lhe visitas semanais e pude constatar a sua evolução.
- Esta criança não pára de nos surpreender…- acocorava-me para receber a “iluminada pelo divino” nos meus braços. - Chaere!
Compadeci-me quando a encontrei não a passear-se mas a correr pelo pátio da sua casa atrás dos seus amigos, os cisnes.
Era uma criança dotada de uma energia infindável, convidando a sua mãe e Asrae, a sua futura ama, a uma atenção redobrada.
Foi uma questão de dias até nos brindar com mais uma magnifica surpresa, quando, na sua curiosidade estimulada, começou a pronunciar as primeiras palavras. A primeira que proferiu foi “asas”, referenciando-se às soberbas asas dos seus cisnes maioritariamente de plumagem negra. A partir de então não mais parou. Rapidamente pegara em palavras que assimilara e formava frases como “Voa cisne, abre as asas!”- bracejava tentando imitá-los. “Tenho fome mamã” e “vamos pintar papá” eram outras expressões que se tornaram habituais.
Apenas com oito meses… era natural que o espanto e incerteza sobre tal criança ainda não se tinham arrefecido. Há duas semanas que o Cisne Negro frequentava o Templo da Iniciação, onde se aprende as noções primárias do conhecimento atlante. Fora necessário abrir uma excepção pois a idade mínima aceitável para ingressar em tal Templo primário era de três anos e a sua curta existência ainda não era contada por anos.
- Nunca tinha visto uma criança com uma aprendizagem tão precoce…! - comentava o abismado Heafadt, Sumo-Sacerdote daquele Templo.
- É uma espalha-brasas, é o que é!- regozijei informalmente.
No entanto não trespassava a comiseração que sentia, não só pela responsabilidade que ela irá carregar mas também pelos seus pais. Intensificara-se o tormento de Mariah tão apegada à sua filha. Sabia que estava prestes a deixá-la partir, mesmo contra a sua vontade. A sua inconformidade não se desvanecia nem com o cansaço nem com o bom senso de Har-Meand…

terça-feira, agosto 15, 2006

Personagens de "Lost-Keys: The Black Swan"


Rinkinen (Reino do Norte de Atlântida)
Cisne Negro (a bebé que nasceu durante a “Luz Frouxa” do Grande Cristal); Caliel (discípulo do Templo da Natureza); Mariah (Mãe do Cisne Negro); Har-Meand (Pai do Cisne Negro); Barvaatus (Rei); Rinna (Rainha); Equam (Guerreiro); Kristellya (?)

Margrietus (Reino do Sul de Atlântida)
Mirthis
(Princesa); Tireu (Guerreiro); Rhanos (amigo de infância do Cisne Negro); Litharn (Rei); Heidei (Rainha); Viderya (Sereia); Perthyan (Príncipe); Harturus (?)

Povo do Cristal:
Ancião Mar-Hir (Pontífice, “avô” do Cisne Negro); Asrae (Sacerdotisa do Templo da Luz, ama do Cisne Negro) Adelius (?)

sexta-feira, agosto 11, 2006

Entre o Profano e o Sagrado (parte 2)

Deixei o Cisne Negro por ora. Seria imperativo ausentar-me para sossego dos seus pais, Mariah e Har-Meand. Estavam informados de que quando menos esperassem iria privar-lhes do que de mais precioso o seu amor lhes tinha proporcionado. Teria preferido não o fazer se me fosse facultada tal opção. Mas a esta criança estavam destinados grandes feitos. Precisava de prepará-la desde tenra idade. Por enquanto ainda poderia brincar inocentemente na companhia dos seus progenitores sem imaginar a vida árdua e disciplinada que a esperava.
Regressei ao cume da montanha mais alta de Atlântida. Aí estava situada a Grande Pirâmide, aquela que sustinha o Grande Cristal, o sol dos atlantes. Isso explica porque não havia noite, a luz giratória do Grande Cristal iluminava toda a extensão desta terra. A única indicação do findar do dia era a apelidada falsa noite, quando a intensidade da luz cristalina diminuía gradualmente.
Era precisamente essa claridade diminuta que se abatia agora no quinto e último dia da celebração do seu nascimento. As festividades tinham terminado na cidade Poseidonis, bem no coração de Atlântida.
O povo recolhia às suas casas. Uns ainda cochichavam, por detrás da luz minguante, sobre aquele extraordinário acontecimento. Por certo alguns achariam que tal bebé, por ter nascido nas horas frouxas estaria realmente condenado e a sua vida seria um autêntico inferno. Conseguia perscrutar tais pensamentos apenas com um ligeiro olhar direccionado aos rostos daqueles que pressentiam o medo. Poderiam pressenti-lo mas por outras razões. Sei muito bem que alguns a viam como um bode expiatório resultante de um conflito já de si evidente entre os dois reinos.
E nem toda a realeza, principalmente os Margrietus, via com bons olhos toda aquela importância, como se tivesse nascido uma Princesa, herdeira ao trono dos Rinkinens. Afinal de contas tratava-se apenas de uma mera plebeia Rinkinen.
Daí que mantivesse a minha máxima protecção mesmo não estando presente a tempo inteiro. A acompanhar o Cisne Negro e os seus pais, estava um enviado meu do Templo da Luz. Era Asrae, uma Sacerdotisa da Luz. Digamos que era a minha valiosa cartada para que os dois reinos olhassem primeiro para o seu jogo a ponto de reflectirem sobre que jogada iriam efectuar a seguir. Estariam dispostos a desafiar este velho?
Os quatro pernoitaram no Templo da Maternidade e aí permaneceram por mais dois dias, até a mãe estar completamente restabelecida. Em breve iria recebê-la sob a luz deste Santuário. As marés mudam constantemente. O tempo mudará também quando o Cisne Negro abrir as suas asas.

(Próximo Capítulo: o dia chegou…)

segunda-feira, agosto 07, 2006

Entre o Profano e o Sagrado (parte 1)


“Caminho nos meandros da Luz, o local mais sagrado de Atlântida. Aquele que divide os dois reinos existentes, os Margrietus dos Rinkinens.
Como deveis calcular a cobiça pelo poder de uma terra onde coabitam dois povos pode ser fatal para o futuro deste mundo.
Como Sumo-Sacerdote o meu dever é pacificar os ânimos, sensibilizar as duas facções da nobreza em particular e do povo em geral.
Represento o Povo do Cristal, o meu nome é Mar-Hir. Garanto-vos que sou velho o suficiente para tropeçar na minha barba e desequilibrar-me. Essa foi uma visão que já tive outrora e que se concretizou uma semana depois. Chamam-me de Profeta por possuir uma natural clarividência. Tão natural como a minha barba. Tinha um dom de adivinhar pensamentos, segredos e até acontecimentos vindouros.
Mas nem sempre o futuro era tão claro como água. Nem sempre conseguia discerni-lo correctamente. E naquela altura o futuro parecia estar comprometido com a Escuridão. O negrume cercava as minhas visões. A incerteza assolava o meu espírito.
Durante um certo período mantive-me em cativeiro no Templo da Luz numa profunda meditação. Estava convicto de que os soberanos de cada reino poderiam aproveitar a minha ausência para difundirem as suas movimentações conspiratórias. A guerra já tinha começado muito antes de eles se terem dado conta.
Rezava aos Deuses pedindo-lhes que me mostrassem um sinal de esperança para a desgraça que se avizinhava.
Uma mãe gritava horrorosamente, dando à luz algures, durante a luz diminuta do Grande Cristal. Por mais esforços que tivessem feito para evitar tal heresia, o bebé iria nascer precisamente nessa altura. Seria a primeira vez que tal aconteceria. Indubitavelmente esse bebé e seus pais seriam condenados pela sociedade.
As visões mostravam-me o contrário. Era uma menina abençoada, uma plebeia, filha de plebeus. E para o bem ou para o mal, o futuro de Atlântida estaria nas suas mãos.
O seu nome fora protegido por uma alcunha: O Cisne Negro, ideia do seu pai. Encarreguei-me de tutelar a criança que antes de nascer já teria um fardo demasiado pesado para carregar. O seu nascimento fora seguido segundo o protocolo real, um pedido que direccionei aos dois reinos numa assembleia extraordinária.
Foi perante a estátua do Grande Deus Poseidon que me responsabilizei pelo nascimento desta criança, ao invés de decidir pelo seu aborto. Certa ou errada, foi essa a escolha que fiz. Quis prepará-la logo desde o seu primeiro dia de vida.
Numa era onde a discórdia era facilmente atiçada apenas pela força do pensamento, previa que os olhares traiçoeiros dos Reis iriam disputar tal criança. Almejariam transformá-la numa escrava do mal e assim subjugar um povo ao outro.
A guerra já se tinha instalado. Apenas permanecia silenciosa”.