quinta-feira, setembro 14, 2006

Viginti Tres (parte 1)

A luz cristalina girava durante o tempo irredutível. Quarenta dias passaram desde o segundo aniversário do Cisne Negro.
Os seus olhos pardacentos estavam mais afastados do solo. Era uma consequência natural, a ampliação do seu centro de gravidade. As suas feições tinham mudado pois encontrava-se mais magra. Era uma evidência clara, tanto que as suas bochechas já não estavam tão salientes. Mar-Hir já não as puxava carinhosamente como era seu costume. Há hábitos que se perdem com a idade mas prontamente outros tomam o seu lugar. Como o hábito espontâneo que o Cisne Negro tinha em sorrir fora substituído pelo hábito do desgosto por estar tão distante da sua casa, dos seus pais.
O Pontífice era vigilante e perscrutava que tal abatimento estava a prejudicá-la. Nem sempre viver na Luz significaria estar imune a qualquer vendaval de obscuridade. Analisava o seu crescimento em termos de conhecimento adquirido. Mesmo já usando um vasto vocabulário, a sua aprendizagem estava a ser mais comedido do que nos seus primeiros meses de vida. Também não era de todo aconselhável ter mais pressa que o próprio tempo. O Pontífice era paciente.
- Habituar-se-á a viver próximo da Claridade Absoluta... – reafirmava convictamente o Ancião. - Serei o pavio que acenderá a chama da sua determinação.
A vida daquele inocente bebé era totalmente controlada pelo Povo do Cristal, principalmente por Asrae, que funcionava como a sua sombra e Mar-Hir como a sua luz que intercedia de quando em vez para embalá-la.
Era notório que se sentia enclausurada num exílio onde todos eram muito mais velhos. Não tinha companhia de ninguém da sua idade com quem pudesse conversar ou até brincar, caso se lhes fosse permitido tal veleidade.
Os únicos dias em que aliava a sua disposição ao brio eram os dias em que recebia a visita dos seus pais. Ou então quando visitava o Templo da Iniciação. O contacto com outras crianças cativava-lhe o espírito mais perspicaz. A sua lábia tornava-se muito mais aprimorada e agia de um modo completamente desinibido. Esses eram factores decisivos para os anos vindouros.

Na Montanha da Luz
O Cisne Negro estava alojada no primeiro andar do Templo da Luz. Havia um corredor iluminado por trinta e seis janelas rectangulares intencionalmente distribuídas aos pares. O seu quarto situava-se no flanco esquerdo desse corredor, precisamente no seu limiar.
Para lá da porta escutava-se o ruído incisivo de uma tesoura. Eram os dedos insensíveis de Asrae que seguravam tal instrumento. Tinha acabado de cortar o cabelo à bebé. A Rinkinen pegava num espelho redondo lobrigando o seu couro cabeludo com receio de se assustar. O seu trejeito impetuoso era demonstrativo do quanto detestava ter perdido os seus preciosos cabelos encaracolados. Achava, na sua mais imaculada inocência, que os seus oito cisnes a detestavam de cabelo tão curto. Era como se tivesse perdido as suas penas e deixasse de pertencer ao grupo.
Para o Cisne Negro poderia ser um acto cruel mas era um daqueles males necessários. Era a única forma de perder o tique de enrolar o cabelo no dedo. Essa peculiaridade retirava-a concentração, de se perder em constantes divagações. Ali nenhum tipo de inércia ascética seria permitido. Esse era um dos mandamentos do Povo do Cristal que tinha não só aprender como seguir. O que era contraditório pois eram um Povo que vivia afastado do tumulto, não intervinham nas frequentes divergências dos dois reinos.
A bebé na sua perfeita ingenuidade considerava tamanha rigidez, um autêntico absurdo. Era-lhe de difícil compressão a disciplina cristalina. E em abono da verdade aquele não era de todo um lugar para crianças de dois anos, fossem Rinkinens ou Margrietus. As únicas crianças filhos do Povo de Cristal eram mantidos sob o mesmo regime que o Cisne Negro: uma exígua convivência colectiva que se traduzia numa descabida dose de solidão em prol de um maior aprofundamento espiritual.
Ambas envergavam indumentárias que desciam até aos pés e eram ajustadas por cintos largos prateados. Ao Cisne Negro foi-lhe atribuída uma dessas vestes simplificadas de tom azul cândido, característica de quem servia a causa templária.
- Porque me estás a pentear? Não tenho cabelo nenhum para ser penteado! - exacerbava, olhando através do espelho invejando-lhe o cabelo longo e luminoso.
Asrae apenas respondera com o seu silêncio. Já não era a primeira vez que se encontravam naquela situação. No entender da Sacerdotisa a teimosia da bebé não iria levar a avante. Insistiu em compor-lhe o cabelo.
- Porque tenho que parecer um menino? - questionou no seu aborrecimento ao encarar aquela visão aterradora caída no chão arroxeado.
- Já te dei a resposta. – suspirou cautelosamente. - Tens a tendência em te distraíres sempre que recorres a esse tique de enrolar o cabelo no dedo. É desnecessário tal exercício, o teu cabelo já cresce encaracolado.
A Sacerdotisa da Luz notou que talvez as suas palavras tivessem saído demasiado rudes da sua boca. Por momentos esquecera-se que era a sua ama, não sua instrutora. Esquecera-se do que as crianças da sua idade necessitam, amor e conforto. Por entre o oblívio, Asrae encontrara um motivo que empolgaria a bebé de tal forma que seria a própria a esquecer-se da lástima de ter perdido momentaneamente o seu cabelo.
- Não querias escrever a tua primeira carta? Que tal começarmos agora mesmo. - definiu num sorriso encorajador.
Após a mágoa a expressão facial do Cisne Negro era colorida por um distinto contentamento. Saltou da cadeira impulsionada pela vontade em escrever para os seus pais.

32 comentários:

Aprendiz de Viajante disse...

Boa noite


Infelizmente estou muito cansada para ler o teu texto e poder sabereá-lo condignamente, razão pela qual vou ter de voltar novamente...

Todavia não queria terminar o dia sem te agradecer as palavras no meu blog e a indicação da música. Aproveito também parra te dizer que este fim-de-semana enviarei para a tua caixa de correio as indicações que me pediste para colocares a música no blog, tal como eu faço.


Um bjinho e até amanhã

Anónimo disse...

Tantas vezes tambem me sinto um cisne negro...
Outras vezes um cisne branco
outras vezes um passaro colorido
outras um peixe
serei o que quiser, o que este mundo entre o real e a ficção me for deixando ser.
Gostei muito de vir aqui...
Aqui fui um peixe dourado, nadando por todos os recantos do teu blog...
Gostei e vou voltar, aparece lá pelo meu...

Isabel

estrela disse...

Olá Luigi, vim deixar um bjinho e desejar bom fim de semana.
fica bem!!

luademim disse...

que bom seus comentários! ;) muito me alegra! bjos e tudo de bom pra vc...

vania ♥ disse...

ola! cada x adoro mais esta historia.. quando criança sempre fui solitaria, nao me dava bem com as outras criança, devo dizer q as axava um pco idiotas... limitava-me a pintar durante horas nos grandes cavaletes do infantario sem chatear ninguem...

beijinhos de cristal

Carla disse...

De passagem e a correr para te desejar um bom fim de semana
beijinhos

Aprendiz de Viajante disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Aprendiz de Viajante disse...

Tal como prometido, voltei!

Desculpa isto aqui em cima, fui eu...


Gosto muito das tuas descrições e fiquei curiosa por saber o que será dito naquela carta aos pais...

Vejo que já toca a música!!! :)))) Gosto.

Um bjinho e bom fds

A Professorinha disse...

A solidão deve ser o que mais custa a um ser humano. Eu sempre tive o terror de ficar sozinha... e o que me aconteceu...

Espero ansiosamente pela continuação.

Beijos

Anónimo disse...

Olá Luigi
muitas vezes me sinto como um cisne negro e a solidão e a melâncolia tomam conta do meu ser...
Estou ansiosa pra ler o próximo...
Agradeço sua visita e suas palavras carinhosas ao tok ...desejo um bom final de semana e deixo bjos com tok de SEDA

Sara Martins disse...

Meu doce contador de histórias...
O teu Cisne precisa de mais raios de Sol na sua vida...
Apesar de tudo, eu acredito nela e acredito em ti!!
Juntos, irão concerteza descobrir um final feliz...
Cada um à sua maneira...

Eu também encaracolo o cabelo com o dedo...

Gentle kiss from your devoted Angel...

* White Roses Princess* - Renata Silva disse...

ainda n li td td td... shame on me... mas sabes k adoro td o k escreves... e é taoo fofoo ler o k escreves sobre a Cisne Negro...************


baci per te

A Professorinha disse...

Claro que me podes adicionar. Eu já te adicionei :)

Beijos

delusions disse...

Eu também enrolo o cabelo no dedo, quando estou nervosa, pensativa ou aborrecida, o que é realmente desnecessário porque tenho caracóis, como o cisne negro...Que outras semelhanças existirão? Talvez essa consciência precoce de determinadas realidades...
Quero ler a carta que ela mandou aos pais!Fico à espera...
Bjs*Bom fim-de-semana

happiness...moreorless disse...

como é bom desfrutar das tuas historias. ja estou agarrada ao teu Cisne Negro...

espero pela continuaçao


um beijinho

Luna disse...

Gosto muito de ler o que escreves, antigamente as historias eram entregues as crianças com a sabedoria dos tempos, estava sempre implicito a descoberta, que pena que cada vez mais isto esteja a acabar
beijonhos

Maresi@ disse...

Ola Luigi... vim rever teu espaço e esse belo texto...sobre esse cisne negro.Estas historias sao deliciosas e fazem nos divagar e reviver momentos passados...
Gostei e agradeço da tua visita ao meu recanto... estar sempre ao teu dispor...


Deixo beijo suave________Maresi@

Anónimo disse...

Acho que após ler os teus textos apenas consigo dizer : e fez-se magia, pelas palavras de alguém que escreve e nos faz flutuar :)
*massive kiss*

Pierrot disse...

Boas Luigi.
Gostei de ler a crónica/livro que publicaste...mais uma.
Bravo e parabéns
Abraço
Eugénio

estrela disse...

"...Quem escreve constrói um castelo,
e quem lê passa a habitá-lo..."
Bjokas e boa semana.

kolm disse...

Existe uma musica que me vem à cabeça cada vez que leio qualquer um dos teus textos, aliás desde a primeira vez que aqui vim. É o que geralmente acontece no abismo cada vez que um novo “ser” começa a fazer parte daquelas linhas... Dou-lhe forma através da musica...

Na minha opinião a musica move sentimentos e sensações deixando fluir naturalmente a intensidade da imaginação...Esta em especial talvez pela intensidade, pela magia da letra que se assemelha à tua escrita... Falo de “Mourning Tree” - Leaves' Eyes

Um sorriso encantado

O Lápis disse...

Lemos e queremos virar a pagina...

muitas paginas.


Prendes-nos nas teias de um universo que só pode existir no nosso coração.

Beijinho

o alquimista disse...

Escelente texto, narrativa superior, a merecer publicação em outro suporte...

Abraço

Anónimo disse...

Feel this... just a blowing kiss...

a cada palavra disse...

hoje tenho um pouco mais de tempo para ti, para saborear tambem as tuas palavras, obrigado pelos comentarios deixados no meu blog, volta sempre que quiseres pois tuas palavras são sempre meigas e doces. isa

Luthien Numenesse disse...

Olá Luigi mais uma vez, sublime texto :)
Há magia nas tuas palavras, consegues transmitir na perfeição :)

Ja leste "A Filha da Floresta", o primeiro livro da Triologia Sevenwaters, de Juliet Marillier?? É fascinante :)

Beijinhos de Luz,

Herenya Na!

Lord of Erewhon disse...

A claridade absoluta declina sempre para a treva... quanto mais luz, mais sombra...

Carla disse...

Passei e deixei o meu beijo num sopro de bom fim de semana

Luna disse...

Para suportar um desgosto, sempre vem um novo desejo para ser concretizado... Um contentamento que faz esquecer uma mágoa... enquanto esquece a mágoa esta desaparecerá!

Doce Abraço Lunar

Joker disse...

Vim ler um pouco da tua magia...repousei e encantei-me no conjunto letras e acordes musicais!!!

Um beijinho Luigi!!!!

Anji disse...

hihihi dont ... so .. seriously

argh.....!

Filos disse...

São fantásticas as raizes que nos unem ao local onde pertencemos...