sábado, setembro 23, 2006

Viginti Tres (parte 2)


O entusiasmo da bebé era enaltecido pelo brilho dos seus olhos quando Asrae lhe entregava os utensílios necessários para escrever uma carta: uma folha de papiro e uma caneta de tinta permanente.
Ambas estavam sentadas junto àquela estapafúrdia escrivaninha aprimorada em vinhático que se encontrava colocada a um canto do quarto. A ocupar o centro estava a cama espaçosa onde inúmeros arcos em ascensão tinham sido incrustados na madeira sugerindo um longo trajecto em busca de uma consciência superior.
A parede à direita era coberta por duas janelas em ogiva ligeiramente afastadas, ou não tivesse aquele Templo o cognome de Templo das Janelas Duplas. O Cisne Negro ainda era nova para tentar perceber os desígnios das janelas em par.
Na parede mais afastada, a da esquerda, estava mobiliário bem trabalhado, uma estante povoada de livros dos mais diversos géneros. Fluía ali uma excessiva magnificência material e espiritual o que levava a crer que aquele não era de todo um aposento decorado para um bebé. Seguramente aquele amplo aconchego tinha pertencido a um estudioso, presumivelmente um Sacerdote.
A pequena criança pegava na caneta de um modo peculiar. Dobrava os dedos unidos da mesma forma que pegava num talher. Era de facto alimento para o seu conhecimento.
- Como vou começar… - pensou, rebuscando as palavras adequadas ao seu subconsciente. – Ah, já sei…
- Permites que veja o que estás escrevendo? - indagou a ama inclinando a cabeça para focar a tinta húmida que secava no papiro.
O Cisne Negro encheu a boca para lançar um não. Era tão engraçado o jeito como ela usava o não tão condignamente que Asrae não se sentiu incomodada com o secretismo imposto pela criança. A Rinkinen debruçara-se completamente sobre a folha de papiro de modo a protegê-la dos olhares de soslaio da Sacerdotisa.
A forma da sua caligrafia era pequena e desalinhada. Notou que estava a dar um espaço razoável entre as palavras. De início aparentava ser um descuido pela falta de prática que tinha em escrever com uma caneta tão fina como aquela. Os seus dedos seguravam-na num ímpeto descomedido para não distanciar demasiado as letras e consequentemente as palavras. Tinha treinado as formas de todas as letras no quadro preto que o seu pai lhe oferecera. Sentir-se-ia muito mais à vontade em escrever com um giz pois se se enganasse poderia servir-se do apagador enquanto que aquela caneta de tinta permanente deslizava na folha como se tivesse vida própria.
Asrae recuava a essa altura relembrando com ternura a reacção da bebé quando lhe entregara a primeira caixa com giz de várias cores.
- Porque não há giz preto? - demandou numa pretensão premente.
- Olha minha filha, não há porque o quadro é preto… se desenhares com um giz preto num quadro preto não conseguirás ver os traços. – explicou amavelmente.
- Mar-Hir era capaz, ele vê tudo…- comentou num breve devaneio. - No outro dia tava a mostrar-lhe a língua quando ele estava de costas e ele disse: “tens orgulho na tua língua. Irás aprender a usá-la com fulgor”.
O Cisne Negro continuava a escrever lenta e descontraidamente. Havia momentos em que a caneta parecia dançar sobre a folha de tão empenhados que aqueles dedos estavam. Mordeu o lábio inferior sinal comprometedor, pois perguntava-se se a sua ama estaria a ler-lhe os pensamentos. Tinha acabado de mencionar o seu nome na carta e não era nada abonatório. Estava a referir-se ao acto carinhoso de lhe ter cortado o cabelo. Contudo, soube disfarçar o constrangimento arremessando-lhe uma pergunta inocente.
- Como se excreve excrever?
- É fácil. Eu soletro para ti. E-S-C-R-E-V-E-R- indicou a ama.
O Cisne Negro escrevia através dos sons e raramente recorria à disponibilidade da sua ama em querer ajudá-la. Algumas das suas dúvidas mais frequentes estavam relacionadas com as semelhanças sonoras do “s” e do “x”, do “k” e do “q”, bastante utilizado na linguagem Rinkinen. Quanto à acentuação decidiu não colocar pois ainda não sabia ao certo como funcionava esse sistema que enfatizava sílabas.
Atribuía o pensamento relacionado com o seu pai escrevendo de um modo mais pincelado. Seria uma pintura meramente abstracta pois rapidamente saltou de um sorriso colorido para a uma figura mais tristonha e tresmalhada. Estava espelhado na sua intimidade o martírio da sua mãe. Por um instante interrompeu o intelecto da escrita. Mostrou-se bastante reticente em como terminar a carta. O nervosismo ordenou, teimosamente, a sua mão em busca de cabelo para encaracolar e não o encontrou.
Finalizou a carta sem mais demoras enquanto esboçava uma cara aflita.
- Tenho que fazer xixi!
Ainda pensou levar a carta consigo mas confiou em Asrae que não iria bisbilhotar. Atrás de si no canto perpendicular a bebé desviou uma cortina espessa de cor carmim que encobria a divisão sanitária.
- Não espreitar! - abanou vigorosamente a cabeça antes de entrar nesse compartimento privado.
Assim que voltou, já mais aliviada, a ama perguntou-lhe com curiosidade na sua voz:
- Não vais deixar que corrija a tua carta?
- Não. Quero que seja o avô a corrigi-la. - respondeu com prontidão.
- Está certo. Vamos procurá-lo. - levantou-se cedendo à vontade da criança.
As duas saíram do quarto encontrando uma acalmia que se expandia ao longo daquele corredor luminoso. Enquanto caminhavam num ritmo lento pleno de admiração, o Cisne Negro jurou ter escutado lá bem no fundo daquele silêncio a voz inconfundível de Mar-Hir.
- Ele já chegou! - anunciou vivamente de sobrancelhas frisadas.
E lá foi ela a correr com a folha de papiro na mão direita. Era impelida pela linguagem serena própria do Ancião que se encontrava a dialogar com alguém no rés-do-chão.
A criança estava tão eufórica que descera precipitadamente os vinte e três degraus até ao piso inferior. Asrae já lhe tinha ensinado a contar até vinte e três na língua Rinkinen. Era uma prática quotidiana. Aproveitavam-se dessa escadaria para exercitar a aprendizagem dos números. Desta feita os números foram ignorados em favor das letras, da carta que tinha acabado de escrever, a sua primeira carta.

26 comentários:

A Professorinha disse...

Desta vez fui a primeira a ler! Que sorte e privilégio. Continuo a adorar ler a história...

Beijos

Anónimo disse...

Nem imaginas as vezes que rio e sorrio ao ler os teus textos...aproveitas todas as minhas gafes..todos os meus deslizes..todas as minhas memorias..o que me vale é que ninguem me conhece... =P se bem que agr ja n é bem assim...e brevemente muito menos...mas nem kero pensar nisso...assustame um bokado a ideia...mas partilharmos todas estas coisas aproximanos sempre um pouco mais e é uma forma de entrarmos um pouco na vida um do outro de maneira diferente...mas muito agradavel e confesso k me sinto muito motivada com todas as coisas k têm acontecido nos ultimos tempos...esta historia foi realmente um optimo pretexto pa me mostrar um pouco a ti e deixar mais de lado o meu lado reservado...e esta a acontecer de uma forma tao suave k ta a ser muito bom mesmo...

ate breve meu contador de historias..eu vou voando por aki..

*beijo leve como uma pena*

Sara Martins disse...

My beautiful one...
Vejo que o sol te sorri...

Consigo entender tão claramente o teu Cisne, por vezes tudo o que precisamos é de papel e caneta...
E é como se uma lufada de ar fresco nos percorresse a alma...
Estou certa???

Hoje foi um bom dia, na verdade um longo dia, mas um óptimo dia para voltar a sorrir...
Completamente exausta, mas tinha de vir ca...
Tudo pelo meu grandioso Anjo da Guarda...

Bons sonhos, my one and only story teller...

Beijo do teu Anjo devoto...

Anónimo disse...

Dolce Amichi,

Não estou de regresso, apenas passo pelos meus mais queridos amigos para matar saudades.

És único. Adoro-te.

Vou enviar-te um recado pela Angel. Lê com atenção. Segue o meu conselho.

Muitos, muitos jinhos lindo.

P.S. ainda me vais explicar o que falas nas "minhas costas" (sorrio).

Broken

Eli disse...

Olá!

Eu tenho vindo cá espreitar, mas não tenho deixado as minhas pegadas. Peço desculpa, pois gosto muito quando também te fazes notar nas tuas visitas e não seria justo vir sem fazer o mesmo que tu. Agradeço-te o que me deixas sempre e gosto da música... se bem que não tenho lido as palavras. Pronot, confessei. Não é por não ter gostado, mas eu, para ler, tenho que ter o mínimo de inspiração/vontade, senão, torna-se difícil a concentração...

:)

Luna disse...

Todos somos filhos do tempo, só precisamos de deixar a alma sair
beijos

Anónimo disse...

Um beijo e um desejo que o sorriso seja o sol a brilhar nos teus lábios.

Alberto Oliveira disse...

Cheguei de uma pausa (curta) e vou pôr a leitura deste conto em dia.

Tem um bom dia!

inBluesY disse...

eu não consigo ler.te, melhor ter tempo :(

kolm disse...

Obrigada (um sorriso grande)
Por me fazeres colocar os headfhones e ouvir bem alto sem mais ninguém saber “Moorning tree”... Esquecer a realidade e começar a voar pelo mundo da magia, seres encantados... e mergulhar bem fundo na imaginação. No doce abismo.

No teu post anterior falaste em “Na Montanha da Luz”.
Não sei se é no mesmo sitio, mas em tempos flutuei por uma montanha designada por “montanha da luz”. Foi onde conheci a Rainha dos Seixos e o Senhor do Vento. E Foi ele quem me aprestou a brisa que trazia “leaves Eyes”. Apaixonei-me por “Amhran”.

Um sorriso mais do que encantado

A perspectiva da tua foto fez-me lembrar uma obra de “Edward munch”.
“O grito”.
Se bem o que a mensagem é bem diferente. (sorriso)

”o grito”

Lord of Erewhon disse...

É muito interessante esta narrativa, que se vai desenrolando... muitas portas, corredores e vários níveis de leitura.

happiness...moreorless disse...

como sempre, quando me estava mesmo a entusiasmar acabou o texto...este Blog é um livro que apetece ficar a ler durante horas.
adoro o teu cisne*

um beijinho

Cherry Blossom Girl disse...

"...Sol, palavra, dança, nua, pluma, tela, pétala..."

Bom fim de semana
Beijinhos
***

vero disse...

Muito obrigada por tão simpáticas palavras!
Beijinhos doces***

Vanda disse...

-foi mais assim: quando dei conta, eu tinha-me transformado num peixe balão sequioso de mar e pronto para defender o meu conceito de liberdade :) eu estava coberta de espinhos que doeram muito ao nascer mas que agora me ajudavam a defender :)

Porque nunca se vive em vão :)


Beijo

Van

PS_Continuas a deliciar a fantasia :)

Anónimo disse...

Ciao Luigi
A sorrir você me deixou com esse texto maravilhoso e que deixa um misto de curisidade pra ler o próximo episódio...agradeço suas palavras carinhosas ao tok...um bjo com tok de SEDA

delusions disse...

Adorei mais este capítulo...Fico ansiosamente á espera do próximo e dos próximos...Não estou habituada a este tipo de leitura, em que tenho que esperar para saber a continuação, mas, até agora tem sido muito bom...Continua!

(O amor também é influenciado pela dopamina, é o que te dá vontade de estares, falares com a pessoa, influi na atração física, mas não só.)

beijos*e obrigada pela visita!

Filos disse...

A objectividade de somar tempo, é sempre ultrapassada pela capacidade de construir memórias reconstruindo histórias cada vez que as recordamos...

Maresi@ disse...

Ola:)) não conhecia teu espaço... vinha apenas agradecer tua visita mas... fiquei deliciada com tão belo texto... onde é criada uma "tremenda ansiedade"pela continuação...ou pelo próximo capitulo..
Gostei e voltarei...
Deixo convite e beijo suave_____Maresi@

Estrela do mar disse...

...uma lágrima minha que eu quero que se transforme num sorriso para te desejar uma boa noite...


Besitos

Anónimo disse...

Luigi amore!
Desculpa a ausência...voltei para te deixar beijinhos de bom fim de semana, saudades, caretas e lingua de fora!
Hoje é sexta...yupiiii!

Chuaaac!
Princesa

estrela disse...

Olá Luigi, vim desejar bom fim de semana e deixar uma bjoka...
Fica bem!

happiness...moreorless disse...

um beijinho
e bom fim de semana =)

Anónimo disse...

….(`“•.¸(`“•.¸ ¸.•“´) ¸.•“´)
….(¸.•“´(¸.•“´ `“•.¸)`“ •.¸)
......d88888bd888b.
.....d8888888888888B.
.....888888P`Y8888P.
.....Y888888.....( , \_.
....,_Y88(.................)....*Passo para te ler...
....Y888888b.......__\..
.....“8“888P........(_.... para saber como estás...
.............|.....----“..
...........~;~~\~..... * Para te deixar um beijo
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..........|___|.|............ e desejo bom domingo!!!!
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«`“•.¸.♥ Nadir ♥ ¸.•“´»
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WHITE ANGEL disse...

Por aqui continua a escrever-se muito bem...
Espero que a vontade de escrever volte e que tenhas encontrado o teu caminho...
Obrigada pela presença constante lá no meu pedacinho de céu...
BEIJOS COM CARINHOS...

O Lápis disse...

Deixo-te um beijinho e votos de uma semana cheia de cartas, palavras, letras, sonhos, desejos, sucessos!

:)

Van