A voz de Mariah tinha sofrido algumas oscilações durante aquele hino verdadeiramente inspirador. Se no início as suas entoações soaram incrivelmente límpidas para a ocasião, no último trecho as notas saíram-lhe vacilantes, quase ao ponto de se descontrolar de tão fragilizada que se encontrava. Mas não foi o que se sucedeu, pois baseou-se na estabilidade que a sua mãe Alissa mantivera ao longo da sua vida. Inevitavelmente a sua garganta secara quando apareceu no anexo exterior segurando a sua filha com firmeza.
Mar-Hir teria felicitado Mariah pela revelação da sua voz de soprano, considerando até que estaria à altura do
Coro Cristalino, um grupo de monges que cantavam aos Deuses. Teria felicitado Mariah pelo cântico escolhido, porém felicidade era um estado que não fluía no seu coração, nem no de Har-Meand, nem tão pouco do Cisne Negro. A bebé estava virada de costas com o seu rosto aninhado no pescoço da sua mãe que por momentos tremia de emoção pela despedida indesejada.
- Preparei-lhe uma merenda e uma cesta com roupa dela… - disse ainda a recuperar o fôlego.
Prontamente Mar-Hir lançou um aceno direccionado para o veleiro para que dois dos seus marinheiros fossem recolher os mantimentos.
Seguiram-se os instantes finais daquela despedida. Har-Meand aproximara-se da sua esposa e filha que permaneciam entrelaçadas. Observou-as intimamente para, num gesto afectuoso, beijar a testa de ambas. Os
Rinkinens seguiram à risca as recomendações daquele louvável cântico: uniram as mãos. A junção só se completaria a partir do momento em que fechassem os olhos para juntos se perderem por caminhos afoitos.
O Ancião e a Sacerdotisa permaneciam a uma relativa distância, esperando como mordomos. Era em circunstâncias confidentes como aquela que Mar-Hir preferia não ter que ler e sentir a mente das pessoas como o fazia inconscientemente.
Havia um propósito afinal de contas. Em torno do sofrimento marcado naqueles rostos havia um pensamento elevado, havia um dogma a preservar. Todos os que estavam ali presentes sabiam que o que estava a ser decidido ali naquela despedida era muito mais que o futuro do Cisne Negro.
Quando os
Rinkinens regressaram ao mundo real os seus olhos brilhavam como cristais e as lágrimas pingavam demoradamente como se fossem gotas a escorrerem de estalactites.
- Deixa-me pegar nela…- disse Har-Meand limpando os seus olhos marejados.
Mariah assim consentiu. O pai pegara na sua filha numa atenção redobrada. Sorriu-lhe um ligeiro entusiasmo naquele momento pós-clímax.
Seguidamente elogiou o seu crescimento,
os seus olhos azul-cinza mais escuros que os seus. Tocou nas faces lisas que já não estavam sujas do carvão aquando da brincadeira de há pouco. Estava bem aprumada, talvez em demasia para um bebé. De cabelo arranjado e envergando um distinto vestido branco livre de mangas, mais parecia uma princesa… e, de facto, era, aos olhos de Mariah que tivera todo aquele cuidado em produzi-la em tão pouco tempo.
Har-Meand fitou a sua esposa num semblante indicativo de que estava na hora da sua filha partir. A mulher moveu-se numa altura em que se escutava um gorjear colectivo. Eram os cisnes que vinham se despedir da sua amiga. Surgiam da esquina daquela fachada como que a pressentir que a bebé iria viajar para bem longe e não voltaria tão cedo.
Mariah olhou de relance para o Pontífice e antes que a pergunta lhe saísse dos lábios finos já Mar-Hir tinha dado a resposta.
-
Os cisnes acompanharão o Cisne Negro. – declarou redundantemente.
O grupo de atlantes caminhou, num silêncio absoluto, os quinhentos metros pelo passadiço de pedra que os levava até ao porto. Atrás seguiam os cisnes numa fila invulgarmente ordeira.
A
Rinkinen ergueu corajosamente a cabeça e entregou a sua filha nos braços da estria Asrae que lhe afagou as costas tentando pacificá-la.
Estava tudo preparado para partir, era só uma questão de dar o último passo, subir para a embarcação.
- Voltaremos a ver-nos muito em breve. - disse suavemente o Ancião do Povo do Cristal em jeito de despedida.
Os cisnes subiam para o interior da embarcação. Os marinheiros contaram oito, seis negros e dois brancos. Rapidamente foram colocados numa zona onde pudessem estar mais à vontade.
- Que os Deuses velem por ti minha filha…- murmurou Har-Meand abraçando-se à sua mulher.
O Cisne Negro sentiu-se desamparada que num movimento repentino, esbracejou violentamente para se libertar de Asrae. Assim que os seus pés tocaram no chão rodopiara bruscamente para voltar a correr para a sua mãe.
-
Mãe, não! - agarrou-se ao braço da sua mãe, puxando em simultâneo o seu pai para junto de si enquanto chorava como uma torneira mal fechada.
No centro daquele turbilhão de sensações estava uma bebé de apenas oito meses e como seria óbvio não saberia lidar com a dificuldade da separação dos seus pais.
Nem Mariah nem Har-Meand, nem tão pouco os Sacerdotes da Luz tinham ficado indiferentes a tão instintivo pranto. Todavia seria necessário colocar algodão nos ouvidos e agir em conformidade por mais que lhes custasse.
Mariah achou não ser possível conter tamanha sofreguidão. Ainda assim encontrou forças no último esconderijo da sua alma.
- Nós visitar-te-emos, jamais te abandonarei minha filha…- inclinou a cabeça tentando explicar-lhe a quem tinha um raciocínio travado por impulsos .
Mar-Hir teve que actuar com providência para não correr o risco da bebé odiá-lo irremediavelmente. Estendeu a sua mão áspera e proferiu palavras de encorajamento.
-
Vinde Cisne Negro, mostrar-vos-ei o vosso caminho, a vossa rota. Sofrer não significará a vossa derrota.
A bebé olhou pelo canto do olho aquela figura que lhe fora sempre fraterna e num ápice parara de chorar. Era como que só a voz do Ancião a serenava da mesma forma que a sua mãe. Acabou por aceitar, ainda que timidamente, a mão do seu “avô”. Embarcariam sem olhar para trás.
- Levar-te-ei ao
Templo dos Sonhos…- prometera o Pontífice já na proa da embarcação.
Rapidamente o veleiro de três mastros zarpara e desaparecera no horizonte do Mar Solahum.
- Viveremos dias de luz frouxa absoluta…- pronunciou Mariah libertando o extremo pesar que havia conseguido reter por escassos instantes.
Aquela mãe, como qualquer outra que via a sua filha ser-lhe retirada tão cedo, almejava palmilhar a nado a rota da sua bebé caso fosse necessário.
- Viveremos com a esperança de um futuro brilhante para a nossa filha, para Atlântida. - replicou Har-Meand numa postura mais equilibrada.