Mariah já vinha sofrendo por antecipação mesmo antes do nascimento do Cisne Negro. Talvez por isso o parto tenha sido tão complicado. Nunca escondera a consternação e austeridade a partir do momento em que Mar-Hir lhe comunicara tais premonições.
- Seja bem-vindo Pontífice!
Sem demoras, Har-Meand aproximou-se para cumprimentá-lo com uma cerimoniosa vénia.
O Ancião do Cristal retribuiu com um leve aceno, quedando-se à entrada. A sua análise fora instantânea. Perscrutou a disponibilidade de Har-Meand, a perplexidade da sua esposa e o sorriso bastante forçado do Cisne Negro, sentada no banco. A bebé que costumava correr para os seus braços tendo-o como um avó, desta vez não conseguia encará-lo. Mar-Hir leu o medo na sua mente, sentia-se encurralada.
- Dar-vos-ei o tempo que precisarem. – pigarreou. - Estarei lá fora. - comunicara num tom de voz mais sisudo não querendo parecer demasiado abusivo.
Afinal de contas encontrara-os ainda com as suas vestes de dormir. Teria chegado cedo demais? Certamente era visto como um homem impiedoso. Ele próprio tinha plena consciência que, de uma forma ou de outra, estaria a encarnar um ser sem escrúpulos. Contudo, à luz dos seus olhos claros não lhe era apresentada outra alternativa viável. Agia como um eterno servo da sua clarividência.
Em passos lentos regressou ao exterior daquela moradia típica da Ilha Cabassus. Eram rectangulares pintadas em tons pastel. A maioria era composta com anexos exteriores, alguns cobertos, outros a céu aberto como era o caso. Dali podia apreciar a vista desafogada para o mar que vibrava ali não muito distante dos seus pés firmes.
Asrae, uma senhora que agia com descrição, como era apanágio do Povo de Cristal, surgia a seu lado. Mar-Hir tinha pressentido a aproximação de tal luz arguta. A Sacerdotisa de cabelos de um loiro abatido e vestes cinzentas interrompia respeitosamente os pensamentos do seu Mestre. Serviu-se de um dos seus ensinamentos, a comunicação dor telepatia.
- Será prematuro levá-la aos oito meses para o Templo da Luz?
- Mais vale ser prematuro do que tardio. - respondia laconicamente usando o mesmo método psíquico.
- Sabeis que a dor da separação irá amedrontá-la. – murmurou Asrae sobre uma evidente consequência que o Pontífice já havia previsto.
Ambos estavam conscientes dos votos que juraram perante os Deuses do Mar: guiá-la na rota do seu destino, na mágoa e no sofrimento, na alegria e na glória. Se entre os dois Elementos da Luz subsistia aquela sensação introspectiva, lá dentro, na moradia dos Rinkinens, o ambiente era definido pela dor de uma despedida prematura.
Har-Meand, que acabara de vestir uma túnica de linho castanho costurada pela sua mulher, tentava apaziguar tal vinculada angústia.
- Visitá-la-emos de tempos em tempos…
- Não é a mesma coisa. Ela é muito nova, precisa de sentir o calor de uma mãe!
A sua agitação era natural para uma mãe que a teve na barriga por um ano e agora iria deixá-la aos cuidados de um velho que seria, na sua óptica, um louco.
- E de um pai…- retorquia o pintor pegando na mão da sua filha.
Mostrou-lhe o retrato que tinha delineado enquanto ela e sua mãe tinha estado dormir.
Mariah estava por detrás dele, junto ao guarda-fato. Tinha acabado de escolher um modesto vestido negro para receber tão ilustre visita.
- E porque não nos avisou que vinha hoje roubar-nos a nossa filha? - queixou-se deliberadamente num tom provocatório.
O seu marido olhou-a de relance sem dar muita importância a tal desaforo. Preferia aproveitar aquele momento de um modo pacífico. Sentara-se no banco com o Cisne Negro no seu colo.
- Acho que podes terminar aqui este contorno. Toma, o pai ajuda.
O Cisne Negro recebera um lápis de carvão e estaria a rabiscar ao acaso não estivesse a mão habilidosa de Har-Meand a dirigi-la no traçado do seu cabelo encaracolado, negro como o próprio carvão.
A bebé continuava em silêncio. Normalmente estaria a divertir-se a pintar durante um tempo indeterminado. Naquela ocasião demonstrava algum aborrecimento. O seu pai apercebera-se na sua pouca vontade. Sentia-a como uma luz frouxa, exactamente o período do dia em que tinha nascido.
- Ela não pode ir de estômago vazio. – indicou a mãe numa voz enfraquecida.
Àquela altura estava, finalmente, convencida de não poderia contrariar a sua partida. Desejava impedi-lo mas não se atreveria.
Har-Meand baixou os braços fazendo menção de se levantar com a sua filha quando Mariah lhe sugeriu que fosse ao encontro do Pontífice enquanto as duas iriam tomar o pequeno-almoço. Concordou, admitindo que aquele momento deveria ser aproveitado entre as duas.
- Mas primeiro tens que lavar as mãos… - pegou no lápis de carvão. - … e o rosto também! – gracejou ao sujar propositadamente o rosto da sua filha com carvão.
O Cisne Negro esboçou um sorriso efémero. Sentia que aquele seria o dia mais triste da sua vida. O primeiro dos muitos que se seguirão.