(Nota Prévia: Apesar desta ser a parte mais longa que já postei gostaria que a lessem com atenção e me dessem a vossa opinião. Estava difícil chegar a esta parte...)
Estava já no seu quarto pronta para dormir no aconchego da sua cama espaçosa. De roupão feito de linho e o Cisne Negro buscava no seu cérebro sentimentos de medo e angústia, sofrimento e dor, tristeza e alegria.
- Queria estar em casa agora…- murmurou profundamente.
Desejou ter cabelo para enrolar no dedo. O cansaço reteve a sua mão de o tentar, era tão inútil como o fugir dali. Jamais o conseguiria.
O sono tardava a surgir devido a essa teimosa inquietação. A Rinkinen sentia-se impelida por uma preocupação mental. O silêncio costumava pregar tais partidas.
Por entre reviravoltas distraídas no seu leito, a sua mente sugeriu-lhe um delicioso passeio pela divagação cristalina.
Assim o fez sem se restringir. Afastou os lençóis acetinados e levantou-se. Olhou em seu redor à procura de um motivo que a tranquilizasse. Não encontrara nenhum. Quase tudo o que ali havia não era seu pertence. Não lhe atraía de todo o aposento que lhe fora destinado. Assim como não lhe atraía viver na Montanha da Luz, por mais espaventosa e agradável que fosse. Não estava a ser ingrata, estava apenas a ser honesta.
Foi desse modo que partiu em busca de uma estabilidade que aquele espaço não lhe proporcionava. Seguiu um sentido tão embrionário como era o seu sexto sentido. Caminhou descalça em passos afincados. O chão poderia ser frio mas não ao ponto de contrariá-la. Por momentos sentira-se fora de si.
Quase sem se aperceber encontrava-se a vaguear pelo corredor principal do primeiro andar. Sentia-se uma espeleóloga sem causa. Abeirou-se a uma das muitas amplas janelas e foi aí percebeu qual a sua intenção: indagar o fenómeno que a Luz Frouxa causava em si. Prosseguiu para indagar o outro lado da sua realidade.
Perdeu-se em voltas labirínticas naquele Templo notabilizado pelos seus intermináveis halls e torreões geometricamente perfeitos. Poucos eram aqueles que tinham o privilégio de passear naquele tão imponente e tão restrito Templo.
A sua curiosidade furtiva levou-a uma grande sala com imensas cortinas de seda de várias cores que se movimentaram num sopro de ar. Sentira de imediato uma descarga friorenta a percorrer a sua pele.
Verificou a entrada que dava acesso a mais um salão. Caminhava lentamente de olhos elevados no fantástico tecto abaulado. Estava tão distraída que não tinha reparado que se encontrava num dormitório e que estava cercada de pessoas que dormiam tranquilamente.
A surpresa levou-lhe a mão à boca. Quando distinguiu aqueles corpos dormindo em inúmeras camas expostas em fila. A luz era diminuta, mas a suficiente para enxergar aqueles rostos. Não reconhecia nenhum deles. Eram todos adultos na casa dos vinte, trinta anos.
Não lhe pareceu razoável estar ali, sentia-se como uma infiltrada. E como não desejava causar nenhum distúrbio, seguiu em frente até a uma porta de madeira lustrosa. Caminhava de bico de pés para não acordar ninguém.
Entrou na divisão adstrita de costas voltadas, enquanto fechava a porta sem causar o mínimo ruído. Quando girou sobre si própria apercebera-se que tinha acabado de entrar noutro dormitório muito idêntico ao que tinha estado anteriormente. Desta feita os seus ocupantes aparentavam uma idade mais avançada.
- Estarei no Templo do Sono? – divagou pensativamente numa expressão patética. Só lhe faltaria encontrar um dormitório de crianças.
Tivera o mesmo pressentimento que a levantara da cama, a mesma sensação instintiva. Havia qualquer coisa que precisava ser descoberta, uma verdade escondida.
Escutou murmúrios vindos da primeira camarata. Voltou ao mesmo. Os seus passos foram mais lestos quando os seus ouvidos escutaram o estrépito acutilante de um jarrão de cerâmica que caíra ao chão e partira-se.
Entrou descaradamente esperando encontrar alguém acordado mas tal não se sucedeu. Porém sentiu a presença de alguém atrás de si. A princípio não conseguia ver para além o vulto de homem de elevada estatura.
- És tu avô?
Não obstante a pergunta da criança, o homem permaneceu calado, impávido e sereno. O seu silêncio dava a entender que não lhe constituíra nenhuma surpresa encontrá-la ali.
Seria um dos guardiães do Templo? O Cisne Negro tentara adivinhar sem se aproximar da pessoa que não conseguia distinguir com exactidão. Temia ouvir um sermão, ou não fosse o Povo do Cristal caracterizado pela sua disciplina austera.
O homem desviou os cascalhos do que antes era um jarrão para retirar um pequeno objecto cilíndrico que cabia na palma da mão. Fê-lo rolá-lo pelo chão até parar junto aos pés da criança. Era uma esfera prateada. Tocou-lhe considerando desde logo uma frivolidade.
Bocejou num profundo anseio. As suas pálpebras começavam a pesar-lhe. Esfregou os seus olhos sonolentos à medida que estranhava como ninguém tinha acordado, nenhum deles! Uma bebé de apenas dois anos não conseguia conceber tal descanso imperturbável.
O vulto ergueu-se fitando directamente a Rinkinen e falou-lhe numa língua que não compreendia.
- Ato Nuardi thaj Sictum…
Foi-lhe proporcionado enxergar com clareza quem estava ali consigo. Afinal não era um homem mas sim uma mulher lindíssima de longos cabelos doirados, um rosto angélico e um corpo esguio.
- Yamsh bei…- pronunciou numa voz absortamente doce colocando o dedo sobre os seus lábios finos.
A mensagem era clara. O silêncio. Abordou-o com exímia delicadeza. Apenas escutava o bater do seu coração.
- Tenho sono…- murmurou com a cabeça direccionada para o chão obscurecido.
Mirou aquela esfera prateada que magicamente se deslocou ligeiramente antes de libertar uma espécie de fumo espesso. A própria esfera tinha mudado de cor, já não era prateada mas sim negra.
Quis demandar à ninfa o que estava a acontecer quando inesperadamente esta se projectou violentamente na sua direcção. Na sua sonolência achou que tudo o que ela queria era segurar aquela esfera e reter os fumos que se estavam a espalhar tal e qual como o queimar de incenso.
Não obstante os seus engulhos medonhos revelavam o verdadeiro rosto daquela mulher. Jamais lhe poderia ser atribuída o estatuto de bela quando as suas órbitas eram desproporcionadas em relação ao seu rosto desfigurado. Numa perplexidade assustadora, a Rinkinen desatou a correr tentando fugir àquela criatura horrorosa. Podia escutar aquela voz exasperante e tinha a noção que ninguém ali iria socorrê-la. Pudera, estavam todos aprisionados num sono eterno.
Os passos titubeantes e olhos fechados da criança tornaram-se num grande perigo pois não sabia por onde se endereçava. Poderia ir contra uma parede, um pilar ou uma porta e magoar-se seriamente.
Fugiu na cegueira tão apavorada que, a dada altura, sentiu o chão a fugir-lhe dos pés. Afinal tinha descido um degrau das escadarias Viginti Tres. Apercebera-se tarde demais pois tinha colocado mal o pé nesse primeiro degrau e desequilibrou-se de tal forma que não conseguiu proteger-se do trambolhão. A luz do mundo cristalino apagou-se na vertigem e no embatimento da sua cabeça na dureza do mármore. Não houve tempo para evitá-lo, o seu corpo tinha rolado desamparadamente os vinte e três degraus só estagnando no rés-do-chão. Aquela queda abrupta deixara a bebé inanimada… o silêncio regressara em absoluto…