O entusiasmo da bebé era enaltecido pelo brilho dos seus olhos quando Asrae lhe entregava os utensílios necessários para escrever uma carta: uma folha de papiro e uma caneta de tinta permanente.
Ambas estavam sentadas junto àquela estapafúrdia escrivaninha aprimorada em vinhático que se encontrava colocada a um canto do quarto. A ocupar o centro estava a cama espaçosa onde inúmeros arcos em ascensão tinham sido incrustados na madeira sugerindo um longo trajecto em busca de uma consciência superior.
A parede à direita era coberta por duas janelas em ogiva ligeiramente afastadas, ou não tivesse aquele Templo o cognome de Templo das Janelas Duplas. O Cisne Negro ainda era nova para tentar perceber os desígnios das janelas em par.
Na parede mais afastada, a da esquerda, estava mobiliário bem trabalhado, uma estante povoada de livros dos mais diversos géneros. Fluía ali uma excessiva magnificência material e espiritual o que levava a crer que aquele não era de todo um aposento decorado para um bebé. Seguramente aquele amplo aconchego tinha pertencido a um estudioso, presumivelmente um Sacerdote.
A pequena criança pegava na caneta de um modo peculiar. Dobrava os dedos unidos da mesma forma que pegava num talher. Era de facto alimento para o seu conhecimento.
- Como vou começar… - pensou, rebuscando as palavras adequadas ao seu subconsciente. – Ah, já sei…
- Permites que veja o que estás escrevendo? - indagou a ama inclinando a cabeça para focar a tinta húmida que secava no papiro.
O Cisne Negro encheu a boca para lançar um não. Era tão engraçado o jeito como ela usava o não tão condignamente que Asrae não se sentiu incomodada com o secretismo imposto pela criança. A Rinkinen debruçara-se completamente sobre a folha de papiro de modo a protegê-la dos olhares de soslaio da Sacerdotisa.
A forma da sua caligrafia era pequena e desalinhada. Notou que estava a dar um espaço razoável entre as palavras. De início aparentava ser um descuido pela falta de prática que tinha em escrever com uma caneta tão fina como aquela. Os seus dedos seguravam-na num ímpeto descomedido para não distanciar demasiado as letras e consequentemente as palavras. Tinha treinado as formas de todas as letras no quadro preto que o seu pai lhe oferecera. Sentir-se-ia muito mais à vontade em escrever com um giz pois se se enganasse poderia servir-se do apagador enquanto que aquela caneta de tinta permanente deslizava na folha como se tivesse vida própria.
Asrae recuava a essa altura relembrando com ternura a reacção da bebé quando lhe entregara a primeira caixa com giz de várias cores.
- Porque não há giz preto? - demandou numa pretensão premente.
- Olha minha filha, não há porque o quadro é preto… se desenhares com um giz preto num quadro preto não conseguirás ver os traços. – explicou amavelmente.
- Mar-Hir era capaz, ele vê tudo…- comentou num breve devaneio. - No outro dia tava a mostrar-lhe a língua quando ele estava de costas e ele disse: “tens orgulho na tua língua. Irás aprender a usá-la com fulgor”.
O Cisne Negro continuava a escrever lenta e descontraidamente. Havia momentos em que a caneta parecia dançar sobre a folha de tão empenhados que aqueles dedos estavam. Mordeu o lábio inferior sinal comprometedor, pois perguntava-se se a sua ama estaria a ler-lhe os pensamentos. Tinha acabado de mencionar o seu nome na carta e não era nada abonatório. Estava a referir-se ao acto carinhoso de lhe ter cortado o cabelo. Contudo, soube disfarçar o constrangimento arremessando-lhe uma pergunta inocente.
- Como se excreve excrever?
- É fácil. Eu soletro para ti. E-S-C-R-E-V-E-R- indicou a ama.
O Cisne Negro escrevia através dos sons e raramente recorria à disponibilidade da sua ama em querer ajudá-la. Algumas das suas dúvidas mais frequentes estavam relacionadas com as semelhanças sonoras do “s” e do “x”, do “k” e do “q”, bastante utilizado na linguagem Rinkinen. Quanto à acentuação decidiu não colocar pois ainda não sabia ao certo como funcionava esse sistema que enfatizava sílabas.
Atribuía o pensamento relacionado com o seu pai escrevendo de um modo mais pincelado. Seria uma pintura meramente abstracta pois rapidamente saltou de um sorriso colorido para a uma figura mais tristonha e tresmalhada. Estava espelhado na sua intimidade o martírio da sua mãe. Por um instante interrompeu o intelecto da escrita. Mostrou-se bastante reticente em como terminar a carta. O nervosismo ordenou, teimosamente, a sua mão em busca de cabelo para encaracolar e não o encontrou.
Finalizou a carta sem mais demoras enquanto esboçava uma cara aflita.
- Tenho que fazer xixi!
Ainda pensou levar a carta consigo mas confiou em Asrae que não iria bisbilhotar. Atrás de si no canto perpendicular a bebé desviou uma cortina espessa de cor carmim que encobria a divisão sanitária.
- Não espreitar! - abanou vigorosamente a cabeça antes de entrar nesse compartimento privado.
Assim que voltou, já mais aliviada, a ama perguntou-lhe com curiosidade na sua voz:
- Não vais deixar que corrija a tua carta?
- Não. Quero que seja o avô a corrigi-la. - respondeu com prontidão.
- Está certo. Vamos procurá-lo. - levantou-se cedendo à vontade da criança.
As duas saíram do quarto encontrando uma acalmia que se expandia ao longo daquele corredor luminoso. Enquanto caminhavam num ritmo lento pleno de admiração, o Cisne Negro jurou ter escutado lá bem no fundo daquele silêncio a voz inconfundível de Mar-Hir.
- Ele já chegou! - anunciou vivamente de sobrancelhas frisadas.
E lá foi ela a correr com a folha de papiro na mão direita. Era impelida pela linguagem serena própria do Ancião que se encontrava a dialogar com alguém no rés-do-chão.
A criança estava tão eufórica que descera precipitadamente os vinte e três degraus até ao piso inferior. Asrae já lhe tinha ensinado a contar até vinte e três na língua Rinkinen. Era uma prática quotidiana. Aproveitavam-se dessa escadaria para exercitar a aprendizagem dos números. Desta feita os números foram ignorados em favor das letras, da carta que tinha acabado de escrever, a sua primeira carta.